19 de fevereiro de 2005

Tempi Cambi (The Godfather II)

No inicio do contrato o que mais me desagradava era ouvir os indianos gritando durante o trabalho na "linha de montagem" dos pratos. Os berros me eram insuportaveis e despropositados. Hoje eu sou um dos que mais canta e grita enquanto monta os pratos. Um dia desse um garcom me perguntou o porque dos berros... estupido.
"Tempi Cambi" (The Godfather)

Em meu primeiro dia trabalhando na cozinha eu vi dois negros, um caribenho e um jamaicano, brigando, mas brigando mesmo, por uma mera espatula. Aquilo me deixou pasmo, escandalizado... "como pode uma coisa dessas?". Ontem eu me peguei pelejando com um jamaicano por uma caixa plastica (que eu uso para descongelar meus peixes e ele usa para transportar brocolis). Eu puxava de um lado gritando: "E minha!" e o infeliz puxava de outro gritando: "Nao! E minha!". No meio disso as portas dos dois elevadores que passam dentro da cozinha se abriram; estavam dentro do elevador esquerdo um monte de garcons e garconetes, do direito, dois capitaes e alguns oficiais. Pelas expressoes faciais eu percebi que os passageiros de ambos ascencores estavam estupefatos com a irracionalidade da cena. Infelizes... Eles nao sabem de nada. As portas se fecharam e a discussao pela caixa continuou.
Soneto do Labor Total

Canso-me tanto. Meu amor, nao cante
a humana condicao com mais verdade
Canso-me como um asno, um ruminante
numa sempre inclinada realidade.

Canso-me assim, de um trabalho incessante
E canso-me alem, alem da boa vontade.
Canso-me, enfim, com grande intensidade,
dentro da eternidade e a cada instante

Canso-me como um bicho, simplesmente,
De um labor sem misterio e sem virtude
com um cansaco macico e permanente

E de cansar-me assim, muito e amiude,
E que um dia em meu quarto de repente
Hei de me descansar mais do que pude

Algo tinha que ser dito sobre o cansaco que eu sinto nessa cozinha. Trata-se de um cansaco que nao pode ser conhecido discursivamente. Assim, escolhi a poesia para tentar transmitir um pouco dessa experiencia.
O Copro Humano

imaginem o coracao. Um musculo que trabalha desde antes do nosso nascimento e que desde entao nao teve ferias, desconhece o que seja intervalo para o almoco, fim de semana, feriado... pulsa e pulsa e pulsa. Tem dias, no final do dia, quando se tem que limpar a cozinha, em que eu digo: se um orgao que esta dentro de vc consegue, vc tambem consegue. Trata-se de um raciocinio cuja conclusao nao se pode deduzir da premissa... mas chega uma hora em que voce tem que simplesmente acreditar. Eita maquina impressionante... a desgraca e que a gente pensa.
Do Contrato

Estou para la da metade do meu contrato como cozinheiro nesse navio, Empress of the Seas; de alguma forma eu acredito que isso deve ser mencionado. Nao estou morto, mas quase la... tem dias que eu vejo uma luz que me puxa...
Das razoes.

existem alguns motivos que me fizeram criar e manter atualizada a presente pagina. O primeiro: assim eu me obrigo a escrever ao menos algumas linhas por dia. Segundo: Eu andava com a consciencia pesada por nao conseguir manter contato com os amigos. Terceiro (que se confunde com o segundo): chega um momento em que se torna fatigante escrever diversas vezes as mesmas coisas para pessoas diferentes ou ficar buscando assuntos distintos numa vida que e pura rotina. Quarto e ultimo: escrevendo no blog eu fico com a consciencia limpa... e quem nao ler que se afunde no proprio sentimento de culpa.

18 de fevereiro de 2005

Rayuela

Ontem os argentinos que tocam tango no navio me presentearam com um pacote de erva mate e um livro de Julio Cortazar. A prosa e encantadora pois aproxima-se daquela espontaneidade presente nos textos de Andre Gide. Mate e Rayuela, com apenas isso fizeram de mim uma pessoa feliz... ao som de um bandoleon... um instrumento que parece um radio muito antigo que chora um pranto de vitrola.

17 de fevereiro de 2005

Perfeicao

meu poema favorito e um escrito por Coleridge. Mas por causa de um verso eu nunca havia conseguido acha-lo perfeito. Neste verso o poeta diz que o mar transformara-se em cobras. Sempre me perguntei: " Por que diabos cobras?". Por que nao sapos ou lagartos, ou algum mamifero. Acabei me convencedo de que as cobras foram escolhidas em funcao da metrica... pela rima. Todavia, certa noite em que navegavamos longe do continente ou de qualquer ilha, olhando para o mar que refletia a luz da lua, dei-me conta de que a superfice da agua, as marolas, pareciam milhoes e milhoes de cobras esfregando-se umas as outras. O mar transformara-se em cobras. Esse mar de cobras ocorre quando nao ha vento, a lua esta a meia altura no ceu e a calmaria parece estar a ponto de torna-se agitacao. Se essa viagem nao me servir de nada, serviu-me, ao menos, para dizer: "eu ja li um poema perfeito".
Historia do puteiro

uma semana depois do ano novo eu e meus dois amigos aqui do barco fomos chamados por alguns indianos para ir a um clube. Fomos. Este "clube" e na verdade um bar onde dancam mulheres nuas e tambem onde, nos fundos, opera um prost'ibulo. Ao chegarmos proximo ao estabelecimento notamos que havia uma fila que, literalmente, dobrava o quarteirao. Ocorre que as putas depois dos feriados de natal e ano novo tiram umas ferias de duas semanas. So haviam tres putas trabalhando... no cais, haviam tres navios, cada um com aproximadamente 2 mil tripulantes e 3 mil passageiros. Quando me iteirei do que ocorria, pela primeira vez em minha vida, senti um mal estar puramente moral. Voltamos todos para o barco admirados com a coragem das putas e com a putaria dos homens.
Desespero humano.

A cozinha tem 135 funcionarios. 130 homens, cinco mulheres.
Dentro dessa cozinha, diariamente, trabalha-se em media 12 horas.
Os hoararios de folga dos cozinheiros nao coincidem com os horarios de folga de nenhum outro grupo de funcionarios. As cabines sao separadas por sexo e por departamento... cozinheiros dividem cabine com cozinheiros. O dia tem apenas 24 horas.
A cozinha tem 135 funcionarios. 130 homens, cinco mulheres.
La Mexicana

Existe uma mexicana que trabalha no bar e se chama Jimena Jimenez, nome de personagem de novela. Ela tem trinta anos, muito mais simpatica que bonita. Um dia desses ela me disse que nao sabe o que quer da vida. Bom, se voce tem 30 anos e esta trabalhando no bar de um navio e' evidente que vc nao sabe o que quer... nao precisa nem me contar. Ela nao gostou da deducao, nem fala mais comigo.
El Mexicano

Eu tenho neste barco um amigo chamado Jorge Garcia Sanches. Mexicano. Sarcastico.
Trabalhamos na mesma cozinha. Semana retrasada ele comprou um aparelho que copia CDs e DVDs. De la para ca ele tem queimado em media 15 filmes pornograficos por dia (dai pode-se ter uma ideia da tensao sexual que paira sobre o navio)... a cinco dolares cada copia... 75 dolares por dia; muito mais do que ele ganha sendo cozinheiro. Se pirataria e pornografia sao crimes, nao se pode dizer que nao compensam.
Dieta

Nao ha um so' instante de meus dias em que eu pense: "estou com fome". A cozinha materializa alimentos na sua frente antes mesmo que o organismo comece a sentir falta de comida. Come-se desenfreadamente: batatas fritas, morangos cobertos com chocolate, bolachas dos mais diversos tipos, frango frito, tortas doces e salgadas... ha' sempre um aperitivo no meio do caminho. Numa vida normal talvez essa dieta viesse a fazer de mim um obeso. Todavia, tambem nao existe um so' momento neste barco em que eu possa dizer: "eu nao estou cansado". O corpo esta sempre beirando o esgotamento. Comendo assim, como louco, garante-se que nem o corpo nem a mente irao se preocupar com comida: Assim tem-se um equilibrio essencial ao trabalho.

16 de fevereiro de 2005

Sasko Manev

Existe aqui um sujeito macedonio. Lutou na guerra de Kosovo e trabalhou como apanhador de macas. Nada do que ele diz faz muito sentido; podendo dizer-se o mesmo de suas acoes. Trata-se de uma mistura de Forrest Gump com um desses personagens secundarios das obras de Kafka. Conversar com ele e como divagar a dois. Nenhuma pergunta tem uma resposta com sentido; e tambem as proprias perguntas nao sao originadas de uma ordem de raciocinios - Kafka perde um pouco a originalidade quando se encontra um sujeito desses. Certo dia, ambos esgotados depois de 15 horas de trabalho, eu lhe perguntei se as vezes ele nao sentia vontade de voltar para casa, rever os amigos, a familia, fazer as coisas que gosta. A resposta: "Voce ve, na Macedonia agora e inverno".
Camara Fria

Todos os pescados sao armazenados em uma camara a temperatura de -22ºC.
De manha, minha primeira obrigacao e' retirar desse quarto gelado todos os peixes a serem cortados durante o dia. Nao existe maneira mais aconchegante de despertar. Sao caixas e mais caixas a serem extraidas de um lugar repleto de caixas e mais caixas. Uma batalha diaria e' travada contra os papeloes e pacotes de frutos do mar... chega um momento em que eu vejo minha mao agarrando e arremessando as embalagens para fora da camara, mas ja nao mais a sinto. O lado bom de estar ali dentro e' que se pode ler, em algumas das caixas, umas poucas palavras em portugues: "produto brasileiro", "manter congelado", "ministerio da agricultura"... essa distante familiaridade e' o unico calor entre os peixes que, congelados, sao todos iguais.
A faca

Numeros: para um almoco corta-se, por exemplo, 40 quilos de corvina e para o jantar algo em torno de 180 quilos de salmao. Esta e a quantificacao de uma parte de um dos meus dias. Minha companheira inseparavel neste intervalo de tempo de 220 quilogramas de pescados e' a faca. Uma confiavel VictorInox. Por experiencia propria eu afirmo: nao ha fio que de conta de tanto peixe. De cinco em cinco minutos tem-se que recorrer a pedra de amolar. As facas sao, por natureza, cegas.
Fish Cook

Um CKFA (Fish cook assistant) - assim eu sou definido neste navio - prepara todos os pescados a serem servidos no almoco e no jantar aos quase dois mil passageiros de um cruzeiro.
Descongela-se, descama-se e corta-se peixes (peixes dos mais variados tipos, formatos, cores e tamanhos) ate dizer chega. O desesperador e' que quando se diz: "chega", percebe-se que apenas metade do trabalho foi realizado e ainda ha muito peixe a ser cortado, descamado e descongelado.