Uma colega de repartição com quem não tenho muito contato, por trabalharmos em cartórios distintos, disse-me ter lido algumas das postagens que publico neste espaço. Chamou-lhe a atenção os textos sobre os servidores e estagiários... Até aí, nada de mais. Fiquei contente pelo seu interesse no que escrevo.
Ocorre que, para minha surpresa, após a leitura, Tatiane mostrou-se receosa quanto ao fato de eu observar tanto as pessoas à minha volta... como se isso fosse o (forte) indício de alguma patologia psíquica: "Credo! Deve dar medo trabalhar com você!".
Diante dessa suspeita, que eu acredito infundada, achei oportuno compartilhar algumas considerações sobre a sanidade mental no judiciário... em especial, para dar à colega, um laudo mais completo da minha mentalidade burocrática e aprofundar a discussão sobre a loucura no mundo do Direito.
__________________________________
Logo que entrei no serviço público um juiz aconselhou-me a fazer um curso de Direito. Ponderou que, uma vez dentro do judiciário, se não me tornasse bacharel no assunto, ficaria alheio ao que acontecia à minha volta e, por conseqüência, alheio às oportunidades oferecidas pela burocracia. Tornaria-me alienado daquela nova realidade em que me encontrava.
Apesar da grande resistência em me enfiar novamente nos bancos de uma faculdade, concluí que o magistrado tinha razão.
Desde que eu metera os pés na repartição, as coisas não me pareciam ter muito sentido. Os papéis, para mim, eram todos iguais; fazer um determinado procedimento de certa maneira ou de outra, em minha cabeça, era completamente indiferente. Enfim, a burocracia não fazia muito sentido... e eu acreditava que, no fundo, os demais funcionários da Secretaria apenas fingiam ver sentido nas coisas.
Conceber que os servidores pudessem agir de tal modo - fingindo um sentido -, fazia-me olhá-los com grande suspeição,pois supunha-os no limite da sanidade mental.
Pois bem, atualmente estou há pouco mais de três anos na administração pública e acabo de passar para o terceiro ano da faculdade de Direito. As coisas agora fazem mais sentido. Tanto no curso quanto no trabalho. A lógica e a prática burocrática parecem se retroalimentar.
Todavia, curiosamente, o fato de as coisas fazerem mais sentido, não diminuiu em mim a impressão de que há uma atmosfera de loucura nos cartórios. Explico-me: o fato de reconhecer que existe uma ordem formulada pelo Direito aos procedimentos de secretaria, não implica que a repetição diária desses afazeres esteja completamente desprovida de insanidade... pois quem garante que o sentido dado pelas resoluções, provimentos, leis, etc, ensinados nos bancos da Universidade e pregados religiosamente nos cartórios, são frutos saudáveis de uma consciência qualquer?
Suspeito que as disciplinas de Direito nos ensinam a agirmos com "normalidade", segundo as regras de um ambiente de sanidade duvidosa. São regras essenciais, indispensáveis, para a sobrevivência em secretaria, não há dúvidas disso; mas desse fato não se segue necessariamente a normalidade. Agora, aprender a agir segundo o regulamento nos faz normais, ou faz de nós - burocratas - sujeitos quase-insanos?
Não sei, mas quando entrei no judiciário, em minha avaliação médica, o doutor perguntou-me se eu ouvia vozes. Na ocasião, disse que não, e fui aprovado. Hoje, continuo não ouvindo vozes, mas tenho a impressão de que a burocracia está a tentar balbuciar alguma coisa. Talvez Tatiane não esteja de todo equivocada.