18 de fevereiro de 2012

Outro Personagem

   Outro personagem que conheci na administração pública foi o Sr. Paredes.
   O Paredes é dono de um sorriso largo e com muitos dentes. Você jamais ficará em dúvida se o Paredes está ou não sorrindo. É inquestionável, é preto no branco. Ou está, ou não está.
   Outra peculiaridade desse distinto senhor é que os seus cabelos grisalhos não se espalharam pela cabeça, mas ficaram concentrados num discreto topete que ele cultiva no topo da testa. É um fenômeno intrigante.
   Além disso, Paredes discorda da minha visão de que o judiciário é uma burocracia de massa. Ele acredita que cada processo é uma história única, especial e que deve ser apreciada de maneira personalizada.
   Paredes é um sujeito bastante esmerado no trato com os processos. Ao analisar uma petição, nunca sorri (tenho certeza) e fica muito compenetrado em suas considerações.
   Certa vez, um estagiário atendeu um telefonema, era para o Paredes. O estagiário chamou, não foi atendido, chamou de novo, silêncio, até que gritou; o Paredes saiu de seu transe e ouviu. "Que desgraça" - exclamou o estagiário - "parece que eu estou falando com as paredes!".
   Gostei da ironia. O Paredes tem um nome que lhe cai bem.


17 de fevereiro de 2012

Pensamento Politicamente Incorreto

   Assim que entrei no judiciário, trabalhei por oito meses num cartório criminal.
   Há um slogan a favor da ressocialização de presidiários na sociedade que diz: "Dê trabalho ao preso".
   No cartório criminal esse slogan sofre uma leve alteração e fica assim: "O preso dá trabalho".
   Com efeito, o réu preso gera muito mais papel que o réu solto, pois está sob a tutela do Estado e o Estado administra tudo burocraticamente.
   Os servidores do setor criminal, vêem-se sempre às voltas com a imensa quantidade de ofícios, mandados e editais que precisam ser confeccionados a cada ação do preso no interior da máquina. É a famosa fadiga burocrática... uma doença ainda não catalogada pela medicina.
   Pois bem... eis um pensamento politicamente incorreto: Por vezes imaginei como seria um cartório criminal na China... um País extremamente rigoroso e com mais de um bilhão de habitantes. Os servidores devem ser acometidos pelo desespero burocrático... outra patologia psíquica ainda fora do catálogo médico.
   Ouso apostar que nos recantos de cada cartório criminal daquele país, existe um servidor que, nos recantos de sua alma, torce por uma condenação capital que ponha fim à avalanche de papéis que cada preso produz.

16 de fevereiro de 2012

A Democracia na América

   As mudanças de rumo num ambiente democrático, fazem-se lentamente, pois precisam mobilizar muitas vontades individuais numa determinada direção.
   Por outro lado, as mudanças em situações aristocráticas ou absolutistas, operam através de revoluções. A mudança de rumo é drástica e, por vezes, sangrenta.
   As insituições democráticas, reflexo da democracia de onde nascem, mudam lenta, mas pacificamente.
   Essa foi uma das observações feitas por Alexis de Tocqueville - parlamentar e filósofo francês que presenciou a queda do Antigo Regime - em seu livro "A Democracia na América".
   Basta olhar para uma repartição pública democrática para perceber que De Tocqueville tinha razão. As coisas são lentas.
   Entretanto, onde trabalho, existe um servidor que acredita fervorosamente em mudanças céleres. Osny discorda de Tocqueville.
   Não é por discordar de uma das grandes mentes do pensamento ocidental que Osny está errado. Bill Gates e Steve Jobs também discordaram.
   A diferença é que Gates e Jobs criaram uma outra máquina no seio da democracia, uma máquina extremamente eficiente, baseada em critérios mais objetivos... atualmente há até um mercado para essa grande máquina digital, a NASDAQ.
   Osny, por outro lado, opera na imensa máquina burocrática, calibrada não por dados estatísticos e critérios evidentes de eficiência, mas por opções políticas e pela inércia da grande engrenagem.
   Na realidade da burocracia, Osny luta contra moinhos de vento.
   Osny não está errado, mas De Tocqueville está mais certo.


15 de fevereiro de 2012

Morte

   Desde que estou na repartição, soube apenas de duas mortes de servidores. Mortes naturais. Não morreram no trabalho, mas em outros contextos. Não me eram próximos; um deles eu sequer conhecia. Soube apenas que havia falecido através de um e-mail institucional, uma nota de falecimento.
   A repartição pública não é um lugar onde o luto é vivenciado e compartilhado. A tristeza da perda não é expurgada através de cerimoniais. A morte parece exigir dos homens esse luto terapêutico, pois ela pinça nossa espiritualidade e nossa religiosidade. Ocorre que o Estado é laico, e laicas devem ser as instituições que representam o estado.
   Assim, a morte, na repartição, não é tratada de maneira espiritual, mas de maneira burocrática. Uma portaria indica a vacância do cargo, abrem-se os editais de movimentação interna, outra portaria indica o preenchimento do cargo vago e a morte, burocraticamente falando, está superada.
   Eventualmente, ao folhar um processo, nos deparamos com o carimbo ou a assinatura de um falecido. É a relíquia que deixaram do tempo em que viveram na grande máquina. Paramos, pensamos na brevidade da vida e seguimos para a juntada das petições.
   A máquina precisa andar.

P.S.: Suponho que aqueles que vivem apenas uma vida burocrática, verdadeiramente não vivem... e verdadeiramente não morrem.


14 de fevereiro de 2012

O Silêncio dos Inocentes

   Recentemente foi publicada uma portaria paradoxal. A Administração determinou que nenhum problema relativo ao setor de informática deve ser resolvido por telefone.
   A mesma portaria estabeleceu, ainda, que qualquer dificuldade com software ou hardware deve ser encaminhada ao CPD (Centro de Processamento de Dados) através de um sistema informatizado disponível na intranet da repartição. Até aí, nenhum paradoxo.
   Ocorre que os usuários com os maiores índices de solicitações ao setor de informática, são justamente os que apresentam dificuldades em lidar com computadores. Dificuldades de ordem não apenas operacional, mas emocional. As constantes trocas de senhas e os misteriosos conflitos internos do Windows afetam os nervos de alguns colegas.
   Agora, como determinar que um sujeito, aflito com a tecnologia a ponto de xingar um monitor, busque resolver seus problemas justamente na própria tecnologia? É como pedir a alguém com fobia de avião, que pegue um voo de 10 horas para resolver um problema. O problema, simplesmente, não será resolvido.
   O telefone era o último refúgio desses espíritos marginalizados pela modernidade. Era o meio pelo qual se podiam fazer ouvir. Agora, a portaria os silenciou.
   Os problemas não deixarão de existir... apenas não serão mais comunicados.


13 de fevereiro de 2012

Discovery Channel

   Ontem vi  publicada em alguns murais do Facebook uma atividade que dizia qual animal representava sua personalidade. A maioria dos que se deram ao trabalho de compartilhar o resultado foram associados a animais imponentes como a águia ou o leopardo. Fiquei intrigado com aquilo e tentei imaginar qual bicho poderia ilustrar um burocrata.
   Particularmente, a burocracia parece-me algo tão anti-natural que relutei em associá-la a qualquer espécie. Para mim, a burocracia é o que distingue o homem da natureza... o homem é um ser burocrático. Nada mais no mundo natural o é.
   Todavia, continuei buscando um mascote... até que me lembrei de uma conversa que tive com Edson, um servidor mais antigo, que anda meio cansado do trabalho na repartição. Quando perguntei-lhe o que achava do ofício no cartório, respondeu-me que era uma repetição sem fim das mesmas coisas, expedir ofícios, certificar, expedir mandados, certificar, numerar as páginas, rubricar, escrever minutas, numerar as páginas, publicar, pegar outro processo, expedir ofícios... e fazer os processos andarem, interminavelmente. Edson estava meio estressado nesse dia... achando tudo uma m...
   Dessa recordação, veio-me um animal que ilustra bem o aspecto inercial da burocracia (que parece revolver a fúria de meu amigo Edson). Existe uma espécie de besouro que, para botar os ovos, junta uma quantidade grande de fezes e se põe a rolá-las por longas distâncias, até que o monte de estrume tome uma forma caprichosamente arredondada. É o famoso besouro rola-bosta. Eis o burocrata.


12 de fevereiro de 2012

Grandes Acontecimentos

   Tenho uma grande amiga que hoje trabalha no Banco Central da Inglaterra. Havia muito que não conversava com Silvia. Outro dia, mandou-me um e-mail "atualizando o status" da sua existência.
   No balanço geral, Silvia está bem. Fico feliz por Silvia.... Ponderei com essa minha amiga que ela está num lugar privilegiado para acompanhar uma das grandes crises do capitalismo. Uma crise que, talvez, mude a atual ordem mundial... "the global order". Silvia está testemunhando um dos grandes acontecimentos da história.
   Depois, refletindo um pouco sobre nossa conversa, percebi que, aqui, na divisa entre o Cerrado e o Pantanal, no seio da repartição, estou deslocado da história, estou muito distante do que acontece no Brasil e no mundo.
   Confesso que fiquei um pouco estarrecido com essa constatação... durante esse dia, pensei muito na minha condição, na minha marginalidade histórica.
   Até que me veio um pensamento salvador, que eu gostaria de dividir com vocês.
   Eu estou na Região de onde emana o maior fenômeno cultural dos últimos tempos. Estou no berço de um grande acontecimento chamado "Sertanejo Universitário". Como Silvia, sou testemunha de algo sem precedentes na história mundial. "Nossa! Nossa! Assim você me mata! Ai, se eu te pego! Ai, Ai! Se eu te pego!". Talvez não seja a mesma coisa, mas é um consolo.