"Graças
a deus, tudo é mistério".
Guimarães
Rosa
As
pessoas me assombram, as vivas mais que as mortas. A bem dizer, morto
que é morto mesmo é carta fora do baralho nesse jogo de tarô que
pretendo tirar para o leitor. Este há de ser um texto místico.
Excluídos os
defuntos, portanto, restam, no maço de cartas, os que ainda estão
por aqui, os viventes, e esses, por Deus, assombram-me no sentido
fantasmagórico da palavra. Restam ali, sobre a mesa, apinhados num
bloco misterioso: Um volume, de três dimensões, magicamente formado
por planos, bidimensionais, sobrepostos e ocultos. O baralho é o
impossível empilhado.
Pois embaralhemos
logo estes arcanos.
Os
vivos, como eu ia dizendo, aprisionados em seus universos, são como
as figuras que habitam as lâminas do jogo místico. São presenças
misteriosas que se movem alheias a mim e, por vezes, quando, por
alguma razão, parecem querer saltar da lâmina em que se equilibram,
gelam-me a espinha.
Há
um mundo dentro das cartas e há outro fora delas. Mundos milenares
cujas fronteiras, infinitas, seguem até hoje desmarcadas e
desguarnecidas. Eu, particularmente, acho uma temeridade que se
deixem, assim, abertas, as cartas perante os homens.
Do
lado de cá, olho os transeuntes estampados do lado de lá,
observo-os longamente em seus itinerários corriqueiros e tenho a
sensação de que não me notam. Quem são esses arcanos? De onde
vêm? Para aonde vão?
Sigo embaralhando as cartas,
sem pressa, até que uma voz, dentro de mim, sugira: "Pare".
Vejo as lâminas
sucedendo-se velozes. Esses fantasmas ocupam minha vida sem
preenchê-la. São como as luzes, coloridas e deformadas dos anjos
presos nos vitrais de uma capela que visitei em Luxemburgo. A pequena
construção católica, caiada e de teto baixo, ficava no meio de uma
ladeira sinuosa de paralelepípedos, escondida atrás de uma das
curvas da ruela que serpenteava pelo minúsculo Grão-ducado. Aqueles
espíritos luminosos pairavam entre a pia batismal e o altar, mas a
capela seguia vazia. Eu seguia só sob o teto divino.
Assim foi por toda a
minha vida com os vivos. Assim é até hoje.
No
início, confesso, causavam-me um pavor secreto, um pânico contido e
silencioso. O padeiro, o motorista do ônibus, os professores, meus
familiares... eram como os arcanos maiores desse baralho de tarô,
que, um a um, me eram revelados, carregados de mistério, atraindo-me
para seus universos secretos. Essas figuras passavam por mim como se
me fossem sorver a alma, tal qual os planetas fazem com os cometas;
tal qual as estrelas fazem com os planetas, tal qual os buracos
negros fazem com as estrelas... naquela época eu não tinha ainda
minha gravidade.
Com
o tempo, tornei-me grave, acostumei-me a essas companhias ausentes,
habituei-me a observá-las, a uma distância segura de seus campos
gravitacionais, e a extrair um certo prazer dessa observação - o
mistério, que segue as regras da gravitação universal, atrai -,
feita sempre de soslaio, de algum canto insuspeito, onde quer que eu
me encontrasse. Olhava o padeiro enquanto metia-se a contar moedas, a
professora que escrevia absorta algum exercício na lousa, o
motorista quando cuidava os passageiros que desembarcavam, nas festas
familiares as pessoas sendo família... espreitava-os nos seus
vagares, na insanidade silenciosa que traziam do além para cá.
Enxergava em seus olhares, nas suas posturas, nos seus gestos e
vestimentas a mesma loucura das figuras que estampam as cartas de
tarô.
Prestem atenção
nas lâminas do baralho místico e verão do que falo.
Na
repartição pública onde trabalho, as aparições também estão
presentes e ganham contornos burocráticos. São fantasmas ancorados
num cartório judicial, dedicados às atividades repetitivas,
idênticas, de secretaria, o que dá a essas assombrações um ar
denso, irrespirável, de expiação de pecados. São almas que se
agarram, de forma ferrenha, a um cerimonial seguido à risca,
religiosamente. A eternidade parece pesar mais sobre esses espíritos
condenados a carimbos e papéis.
E
tendo carteado o suficiente ao longo dessa vida, navego com razoável
destreza também entre eles. No fim das contas, nesse jogo de
espectros, na sucessão de fantasmas, não há essa coisa de carta
boa ou de carta ruim. Os arcanos se abrem na ordem em que se abrem. O
que se há de fazer?
Ouço uma voz que me
sugere: "Pare". Descanso o baralho sobre a mesa. Corto o
maço de cartas. Retiro a lâmina inaugural do bloco de arcanos com o
mesmo pavor que Arthur extraiu o aço de Excalibur cravado na rocha
enfeitiçada. Pouso-a distante dos maços cortados, sem revelá-la.
O
primeiro fantasma de que tenho recordação é o meu irmão caçula.
Por toda vida seu espectro me espantou.
Parecia haver sempre
algo de inesperado, prestes a acontecer, em meu irmão, tão
imprevisto quanto os sentidos que se pode arrancar duma carta de
tarô. Tão imprevisto como o destino traçado pela lâmina de
Excalibur.
Se
eu imaginava que ele iria virar à esquerda, ele dobrava para a
direita. Às vezes eu supunha que ele se lembrava de um determinado
evento comum em nossas histórias, mas aquilo não havia sido
registrado, como se tivesse vivido uma infância completamente alheia
à minha.
Às
vezes saía-lhe da boca conhecimentos, verdades, anedotas das quais
eu sequer suspeitava... e assim eu observava, absorto, com alguém
similar a mim podia vagar por minha vida de maneira tão inesperada.
Ainda que se saiba
quais são as cartas do tarô, não há como saber em que ordem elas
irão se abrir. Eis o mistério que me afligia. Aquele ser
assombrava-me, sem que eu sequer soubesse, ainda, o que eram as
assombrações, sem que eu sequer soubesse que um homem podia viver
assombrado por seus fantasmas.
A
primeira carta que se abre no jogo de tarô inaugura o mistério. As
demais o constroem. Meu irmão inaugurou o mistério.
Está aí, leitor,
aberta sobre a mesa, a primeira lâmina, o primeiro arcano.
Agora, eu lhes digo
que, por mais alheios a si que vaguem os fantasmas, por insondáveis
que sejam os mistérios que carregam, esses espectros, essas
insanidades secretas, acabam por lhe moldar o espírito... os
arcanos, presos às cartas, ultrapassam as fronteiras desguarnecidas
do mundo místico, para esbulharem o meu mundo, para ocuparem-me a
vida. Meus fantasmas são quem sou, são o fantasma que me tornei.
Sou
o padeiro que conta as moedas, sou a professora que escreve no
quadro, sou o motorista que, pelo retrovisor, cuida o passageiro que
desembarca, sou o burocrata ancorado em secretaria, sou o irmão que
me assombra.
As
lâminas do tarô são pequenos espelhos que refletem a alma de quem
olha o baralho.
As
pessoas me assombram, as vivas mais que as mortas. E quando eu achava que já havia me acostumado
aos meus arcanos de olhares ensandecidos, surge em meu purgatório,
nova fantasmagoria.
Há
meses, uma intérprete de signos, chamada Catherine Howard, tomou de
mim o maço e virou sobre a mesa uma carta inesperada. Era, como meu
irmão o foi no passado, uma lâmina inaugural, e que instituía um novo mistério em minha vida.
Era
um novo fantasma, parecido comigo mas, ao mesmo tempo, imprevisível
com qualidades, vontades, manias que não eram minhas... aquela lâmina refletia um ponto escuro de minha alma.
Esse fantasma, tão
diferente de todos, tão inesperado, era um texto. Sim, caro leitor,
uma sucessão de letras, palavras, em linhas e parágrafos; uma forma
tão antiga, tão ancestral quanto a própria morte e que nos
assombra por tornar o presente exasperador. Também assim não são
os espíritos: Ancestrais, mas que tornam o agora insustentável? Era
um texto, era um fantasma, era a tradução, para o inglês, de um
ensaio que eu escrevera. Havia naquelas linhas algo parecido comigo,
mas que, ao mesmo tempo, movia-se e desenvolvia-se alheio a mim.
As
palavras pareciam ser as minhas, mas o ritmo, o som, a métrica não
eram meus.
Mirei, por semanas,
aquela lâmina imprevista de tarô sobre a mesa. Reparava em seus
trejeitos, em suas cores, em seus desenhos... tudo era novo.
Não
era a espada fincada na pedra, extraída da rocha pelo futuro rei de
Avalon. Não havia uma ação para a conquista da lâmina. Eu não
escrevera aquelas frases. Ao contrário, a carta vinha até mim.
Aquele aço me era dado, me era oferecido, por uma sacerdotisa.
Aquela lâmina era a Excalibur ofertada a Arthur pela Dama do Lago.
O
fantasma, o texto, tão parecido e tão distinto de mim, atraía-me,
assombrava-me. Ler aquela tradução era deparar-me com fantasias
inesperadas e inocentes, com espectros não previstos em minha
própria escrita. Uma escrita que, ao final, talvez não fosse minha.
Era
uma nova assombração a sorver-me a alma.
Naquele idioma,
cheio de consoantes, sem variações de gênero e de palavras curtas,
senti-me (tolo que sou), mais próximo de George Orwell, senti-me tão
parecido com James Baldwin que cheguei a imaginar-me negro como o
ensaísta, senti-me herdeiro de uma tradição literária épica, de
reis e magos e espíritos e fantasmas.
Senti-me alguém que
não sou. Senti o assombro de ver um irmão, comigo parecido em tudo,
e em tudo distinto de mim.
A
lâmina virada por Catherine V. Howard, "The Lady of the Lake",
inaugurou, no jogo de tarô, um novo mistério, um novo espírito que
me assombra, mesmo agora, no instante em que concluo este texto
místico que escrevi para lidar com meus fantasmas.