Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada,
tudo é alheio ao meu destino, alheio, até, ao destino próprio (…)
Fernando Pessoa
Sempre que eu acordo o dia já está ali, à espreita, de tocaia.
Mesmo que eu me desperte antes do sol, lá está ele, posto,
aguardando-me com seus planos, suas insinuações, suas lembranças.
Quando os sentidos se abrem, ele me inunda com um futuro que vai se
realizando instante por instante, entrando por todos os poros, pelos
orifícios da cabeça, pela pele... não há o que impeça a
inundação, ele vaza, esguicha e escorre com a força do inevitável.
Sinto-me como um carro tragado pela maré alta para o fundo do mar; a
carcaça, em algum ponto, cede à pressão da água. À medida que
afunda se enche. À medida que se enche, afunda. Tudo o engole, a areia cavando debaixo das rodas, as ondas dobrando
camadas de água sobre a superfície, até que tudo o que se vê é
mar.
Tento fechar as brechas, puxo as cobertas, mas o dia nem se dá
conta desse esforço, ensopa o que lhe cruza o caminho, igual
rio que enche depois da estiagem. Eu sei que não serve de nada, mas mantenho os olhos
fechados, tapo os ouvidos, afundo o rosto no travesseiro... e o dia
vaza para dentro.
Tem um jeito de loucura essa coisa de tentar não despertar. Quanto
mais o dormente luta para seguir dormindo, mais acordado ele está. E
é um esforço que se repete, mesmo que esteja anunciado, desde
sempre, o seu retumbante fracasso.
Cada gota que se acumula nesse acordar é um instante. O presente
goteja o dia inevitável. No fundo, no fundo, o presente é mera
formalidade, um cerimonial para o preenchimento do dia que me
aguarda, é uma variável: Vazão, volume, tempo. Logo, tudo é
preenchido.
Desperto quase todos as manhãs nesse afogamento. Inundado.
Espicho-me na cama. Não reclamo. Esses dias, ensopados de
instantes, têm lá suas vantagens. É que eles já vêm preenchidos,
são pré-fabricados, fáceis de consumir e têm um gosto familiar de
nada. É como se a vida já viesse vivida.
Como esses livros de desenhar que já vêm com os traços impressos
em cinza claro, e que você só precisa passar o lápis por cima para
ter um cachorro, ou uma árvore, ou um personagem de desenho animado.
Depois de contornadas as linhas traçadas de antemão, vê-se o desenho que
já estava desenhado no papel. Esses livros, como os dias
preenchidos, roubam-nos a angústia da folha em branco, poupam-nos do
vazio no coração que precede o ato de coragem e de irresignação
que é riscar o papel. Eles nos ensinam a acreditar que existe um
jeito de fazer as coisas sem o aperto no peito que anuncia a criação.
Pegue um papel em branco. Empunhe um lápis. Verá do que eu estou
falando.
Então, nesses dias com linhas em cinza claro, consigo fazer tudo
com uma grande margem de previsibilidade; as coisas já estão
decididas, desde a locomoção, o itinerário, a escolha do que
comer, o tempo de comer, o que vestir, com quem falar, como falar e
até as conversas. O dia me preenche com variáveis conhecidas,
facilmente calculadas, repetidas à exaustão.
Esses dias não são ruins. Vivo-os como um animal doméstico.
O gosto da ração, servida na mesma tigela, no mesmo horário, a
hora do passeio, as ruas, os cheiros da casa e da vizinhança. Tudo é
previsível ao bicho engaiolado.
Há uma calma no olhar do cão adestrado. Olho minha cachorra agora,
deitada à porta, sobre a banda direita do seu corpo branco e marrom;
com o pescoço desafiando a gravidade, fita-me por sobre o ombro.
Nesse olhar adestrado de uma vira-latas, vejo-me.
E, no entanto, nem todas as manhãs são iguais. Não. Vejam Gregor
Samsa, por exemplo, caixeiro viajante, em cinco anos de emprego nunca
tinha estado doente, pegava o trem das cinco: “Numa manhã, ao
despertar de sonhos inquietantes, deu por si na cama transformado num
gigantesco inseto”.
O dia que Gregor Samsa esperava jamais nasceria. Não naquele dia.
Não pegaria o trem, não tomaria o café de sua mãe, não iria ao
trabalho. Esse dia de cão adestrado não amanheceria com Samsa. Eis
a angústia da folha em branco em todo seu resplendor, sem a linha
cinza claro a conduzir o lápis.
A mim, também me afligem essas manhãs de Gregor Samsa, em que eu
acordo e o dia ainda não está lá. Como se ele tivesse perdido o
metrô, como se a maré tivesse esquecido de subir. É como se o dia
ainda não tivesse acordado.
Nessas manhãs meus sentidos também se abrem aos poucos. Abro os
olhos, os ouvidos, as narinas, sinto a saliva grossa em minha boca,
sinto o ar frio sobre a pele e não me afogo. Nada se impõe. O dia
não me inunda. Não estou sob as leis da mecânica dos fluidos, a
física que se aplica é outra, o mundo é outro. O despertar é
seco, ouve-se o soprar do vento correndo folgado na vastidão do
vazio deixado pelo dia que ainda não chegou. É o vento descrito no
primeiro parágrafo da Bíblia, quando Deus ainda não havia pensado
sobre a luz: “A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o
Oceano e um vento impetuoso soprava sobre as águas”.
Vejam bem, não importa muito o horário exato em que eu me
desperto, se nas primeiras horas da manhã, ou se quando o sol já
vai alto, o fato é que, de vez em quando, simplesmente, o dia não
vem .
“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, deu por si na
cama transformado num gigantesco inseto”.
O dia é possível, mas não é certo.
O presente, nessas manhãs, os instantes, carregam consigo uma
quantidade infinita de possibilidades. Nenhum itinerário está
traçado, nenhuma roupa está previamente escolhida, nenhuma refeição
está planejada, nenhuma conversa é meramente cordial. As coisas são
vividas sem antecipação. Nesses dias, parece-me estranhamente
atrativo sair alguns minutos antes e pegar um caminho mais longo,
vestir uma roupa nova, ou uma meia diferente da outra, comer um pouco
a mais ou um pouco a menos, ou em outro horário, ou comer coisas
diferentes, parar para ouvir as pessoas com mais atenção, falar um
pouco além do indispensável, ler um poeta desconhecido...
Tira-se o cotidiano, vá lá, mas daí o que sobra?
Nessas manhãs, sem o afogamento de um dia que me inunda, afogo-me
no vazio. Há até uma espera para que o dia, ainda que em atraso,
comece a vazar para dentro. Sento-me na beira da cama e espero sua
chegada, como se a falta da maré fosse, na verdade, o anúncio de um
tsunami. Como se o metrô que não veio fosse o anúncio de um
descarrilamento, de um ataque terrorista acontecido em algumas das
estações anteriores.
Aguarda-se, para que as coisas tenham algum sentido. Qualquer
sentido que seja.
Nutro a esperança de Gregor Samsa, que em sua forma de inseto,
depois de ter perdido o trem das cinco, e das sete, ainda esperava
ser capaz de pegar a próxima condução: “De qualquer maneira,
ainda posso pegar o trem das oito”.
E, no entanto, nada. Nada vem preencher o vazio do dia ausente. O
que vem, vem de dentro de mim, meus pensamentos, minhas conjecturas e
eles são poucos, são parcos, são um sopro que não presta para
encher um dia.
Acostuma-se com a asfixia cotidiana. O ensopamento diário me
preenche. E de ser preenchido todo santo dia, desaprendo a ser vazio.
Levanto-me, respiro, olho pela janela, penso meus pensamentos
limitados, sem dono, e é com esse nada, com esse pensar miúdo, que
tenho que me virar para lidar com a jornada a frente.
Lembro-me de Gregor Samsa, o imenso inseto, tentando levantar-se:
“Precisaria de braços e mãos para erguer-se; em seu lugar tinha
apenas inúmeras perninhas, que não cessavam de agitar-se em todas
as direções e que de modo algum conseguia controlar”. Nessas manhãs, nem o corpo nos serve de nada.
Ouço minha esposa passar de um cômodo a outro da casa. É preciso
dar um sentido para aquele corpo, para aquela alma que se move. Tudo
parece novo, inédito, justamente porque me falta o dia, com os
sentidos já dados. É preciso dar sentido aos ruídos, à luz que
entra pela janela. Então busco na memória uma luz parecida, uma luz
que, em meu passado, teve algum sentido que eu possa usar agora para
vestir essa luz que entra. O cão late. Para um desconhecido? Para um
gato? Outro cachorro? Late de fome? É difícil saber. É um latido
agudo, repetido, martelado. Vejo meu rosto no espelho, não apenas
para saber onde esfregar o sabonete ou determinar que parte ficou sem
enxágue, o reflexo não me serve só para guiar a escova de dentes
pelos dentes, pelas gengivas. Vejo-me. Penso algumas coisas sobre
aquela pessoa refletida, mas não falo. Imagino que ela saiba o que
eu pensei. Além disso, não gosto da ideia dele repetindo tudo o que
eu disser. Mas imagino qual seria a cara que faria se eu lhe dissesse
tudo o que estou pensando. Ainda que ficasse me repetindo, ainda que
ele saiba... queria ver a cara dele, ouvindo essas coisas da minha
boca; ele não conseguiria fingir indiferença o tempo todo. Meto-me
no chuveiro e é preciso dar sentido à água, porque o dia não
veio. Minha esposa fala algo sobre um vaso do jardim. São tantos
vasos, com formas parecidas. Penso em vários vasos até encontrá-lo.
É um vaso de barro, pendurado no muro, ao lado de uma samambaia. Sei
de que vaso está falando. Volto à conversa e o assunto já é
outro. Qual o sentido daquele vaso? Seco, olho as camisas
enfileiradas no armário, como soldados, e penso em gritar-lhes:
“Sentido!”. Mas não vão entender a ironia. Alcanço uma camisa
e tento entender porque, dentre todas, tirei aquela do cabide. E tudo
se prolonga quando se fuça as lembranças.
“Ao mesmo tempo em que tudo isto lhe saía tão desordenadamente
de jacto que Gregor mal sabia o que estava a dizer, havia chegado
facilmente à cômoda”.
Então, no carro, tentando decidir por que caminho chegar até o
trabalho, tentando escolher uma velocidade no velocímetro, uma
velocidade e um caminho que façam sentido, percebo que ainda não
consigo entender nem os passos matinais de minha esposa, nem a luz
que entrava pela janela – e que já deve ter mudado –, nem o
latido do cão, nem meu rosto no espelho, nem o vaso do jardim, nem a
camisa que me cobre o corpo. O dia segue ausente, vazio, não dou
conta de enchê-lo.
Feliz ano novo!