Ao amigo Luiz Henrique, "Motors Vivos".
Todo lo trascendente de nuestra empresa se nos escapaba
en ese momento, sólo veíamos el polvo del camino y nosotros
sobre la moto devorando kilómetros en la fuga hacia el norte.
Ernesto Guevara
Ao longe, por cima da vegetação, ergue-se a poeira, como se o fino
véu da estrada se desabotoasse do chão e o tecido que lhe cobria,
de repente, se abrisse ao vento. Coisa fina veste a vereda.
O cachorro, um vira latas de pelo curto que até então esfriava a
barriga no cimento da varanda, com a cabeça sobre as patas
dianteiras e olhos quase cerrados, nota o caminho se despindo. Move o
olhar para ver as vestes do chão ganhando o céu.
O que pensa? Não sei. Somos desconhecidos dividindo a mesma sombra.
A cortina de pó se vai soltando dum corpo longilíneo e
interminável. O vento, devagar, tremula o tecido.
Esse desnudar vem acontecendo em nossa direção. O cachorro ergue a
cabeça e firma o pescoço; o resto do corpo fica igual estava. O cão
fixa o olhar onde o chão de terra desponta, onde a vegetação
desenha uma esquina. O que despe a estrada vai aparecer ali, naquele
entroncamento de vias que se vê da varanda.
Já se ouve o barulho de um motor.
Não passa muito e, na dobra da estrada, aponta uma motocicleta.
Inclina-se, para fazer o contorno do caminho que se quebra, e logo se
endireita. Passará na frente de nossa varanda.
O cão se põe em pé, as pernas magras levemente espanadas contra
o chão, o rabo em riste, os olhos fixos e o corpo endurecido, como
se o tivessem empalhado naquela posição. O cão pondera a correria
com todos os músculos do corpo, como o pensador de Rodin.
A moto se aproxima, já se ouve a combustão da gasolina nos
cilindros. O bicho sai em disparada, patinando no cimento liso da
varanda e ladrando rumo à estrada, na intenção de interceptar o
automóvel de duas rodas.
De repente, na esquina, aponta mais uma motocicleta… e outra. É
um bonde. O cão dá uma rabeada. Não sabe o que faz, quer alcançar
as três ao mesmo tempo. A decisão é rápida, para um bicho
irracional; num instante, numa virada de torso, retoma a perseguição
da primeira moto.
Quando o veículo cruza a frente da varanda o cão já está quase
na estrada, emparelha o corpo com a via e põe-se no encalço da
máquina. As orelhas colam-se ao crânio e um cabeceio contínuo guia
o corpo que se arqueia e se distende na perseguição, as patas mal
relam a terra, que se vai erguendo. E o bicho ladra.
A primeira moto se distancia, mas o cão segue o trecho, sabe que
logo estará no encalço da segunda motocicleta e depois da terceira.
O danado quer pegar aquele bonde. A poeira se adensa e perco-os de
vista.
O que se passa na cabeça daquele cachorro? Ele, por certo, nunca
viu aqueles motociclistas, nem suas motos, não sabe para onde vão,
nem o que farão… e, no entanto, lá se foi o bicho, como um louco,
atrás das rodas. O que chamo de loucura é esse vazio de sentidos
que nos afasta.
Aguardo-o. A poeira cobre tudo e demora a baixar. Já não mais se
ouve o ronco dos motores nem os latidos. A estrada segue deitada, com
suas vestes ao ar.
Na varanda, vendo o véu de pó cobrir a vista, checo a bacia de
água. Está cheia. O bicho vai voltar sedento.
Dali um tempo me aparece o cão, vem amolecido de tanto correr.
Parece que sorri. Passa que nem me vê. Cai dentro da água e ali se
demora, como se irrigasse um deserto dentro de si, como se tivesse
engolido toda a poeira fina daquela estrada. Deita-se de lado na
sombra da varanda, com as quatro patas esticadas, satisfeito.
Essa lembrança visitou-me dia desses. Eu estava na frente de casa,
havia comprado uma motocicleta vermelha usada não tinha dois dias e
tentava botá-la para andar. Confundiam-me os comandos: freio,
embreagem, setas, pedais, acelerador, buzina, tudo se misturava.
Montado na máquina, quase sem sair do lugar, fascinado com a
novidade de duas rodas, receava que ela pudesse, a qualquer momento,
matar-me.
Como? Não sei ao certo. Sabia apenas que, num átimo, ela poderia
dar cabo de mim. Era como estar diante de um demônio cheio de
encantos… o mal parecia espreitar por entre os detalhes do motor.
Ela me falava com ruídos esquisitos e tremores quando a ligava,
quando a deixava morrer, quando acelerava; parecia possuída por uma
força pavorosa e incompreensível. Suas inúmeras vozes, seus
rangeres de correntes assombrados vinham das profundezas do cilindro
de combustão. Era uma máquina endemoniada. Dava-me medo.
Dei-lhe o nome de Legião.
Como nos conta São Marcos, Jesus certa vez, quando passava pela
região dos gerasenos, encontrou-se com um corpo habitado por
espíritos vindos dos sepulcros e que ninguém era suficientemente
forte para dominar. Ao perguntar-lhe o nome, teria respondido: “Meu
nome é Legião, porque somos muitos”.
Pareceu-me um bom nome para a Yamaha vermelha.
Batizada a motocicleta, a “Legião” seguia ali, grunhindo,
possessa. Era preciso exorcizá-la, mas eu não era Cristo e, além
disso, faltavam-me dois mil porcos e um penhasco na vastidão plana
do cerrado.
Empacado no acostamento da estrada de terra com a “Legião”, em
frente à varanda, eu ouvia seus roncos tomado de medo como os
gerasenos.
Foi quando, anunciadas pela poeira alta, algumas motocicletas
anônimas se aproximaram de onde eu estava. Passaram por mim,
desconhecidas, indo para algum lugar incerto num tempo não sabido.
Parado no acostamento com a “Legião” ergui a cabeça e as vi
se distanciarem. Uma seguida da outra iam alcançando a lonjura da
estrada até sumirem na poeira. Dentro de meu capacete ouvi um
respiro profundo que chegou a embaçar a viseira e seguiu-se de um
forte aperto no peito, como um nó que se firmasse no centro de uma
corda tensionada.
Por instinto, acelerei a motocicleta, tirei o pé do freio traseiro
e soltei a embreagem… rápido demais, é certo, porque a “Legião”
deu uma rabeada, mas logo firmou-se e ganhou a estrada. Quando dei
por mim estava no encalço daquelas máquinas anônimas.
Como as orelhas do cão, colei-me ao tanque da “Legião” e senti
seu motor trabalhando, ritmado, constante, como se pulsasse em mim um
outro músculo cardíaco.
Não era uma pulsação externa a mim, alienígena ao meu corpo,
como um marcapasso. Era como seu eu tivesse descoberto aurículas e
ventrículos adormecidos e que, embora sempre tivessem feito parte de
meu organismo, pela primeira vez, pulsavam.
Senti meu peito expandir-se para acomodar aqueles dois corações.
Torci um pouco mais o punho no acelerador e senti a dupla cardíaca
vir à boca. A “Legião” gritou por longos segundos até eu me
dar conta de que ela pedia marcha. Apertei a embreagem com minha mão
esquerda e chutei o pedal para lhe dar o que desejava. Esqueci de
soltar o acelerador. Outro ronco fundo e amargurado e um leve soco
quando a marcha entrou. A “Legião” vencia a estrada, vencia o
mundo, como se as suas rodas é que fizessem o planeta girar…
Soltei o acelerador e pude sentir os corações resfriarem. As motos
se distanciaram. Bandeei-me para o acostamento. Era hora de voltar.
Como o cão, eu voltava com um sorriso indecifrável no rosto e
com o nó do peito desatado.
Encostei a “Legião” e sentei-me na varanda. O cão veio
fazer-me companhia. Agora nós nos entendíamos, como membros da
mesma matilha. Reconhecíamo-nos como seres bicordianos.
Tínhamos um coração que, latente, no silêncio de nossos peitos,
sabíamos que estava pronto para pulsar ao som da combustão nos
sepulcros dos cilindros.
Sentando na varanda, prestava atenção em minha pulsação. Uma
batia lenta e a outra hibernava… aguardando o ruído da partida. Ao
lado do cão, contemplando a motocicleta, notei que sua placa
estampava três consoantes “NRV”… ponderei que era a sigla de
algo, algo como “NIRVANA”. É certo que havia uma espiritualidade naquela máquina.
Ao longo da História, ao passarem por grandes experiências,
indivíduos receberam outros nomes, outras alcunhas. Isso porque
existem experiências das quais não se sai o mesmo… Era tempo de
dar outro nome à Yamaha vermelha.
Por conta da revelação mística daquela corrida, resolvi que seu
nome seria agora “Lótus”… era a Lótus vermelha do cerrado.
Reza a lenda que, na tradição budista, a lótus vermelha simboliza
a doação de um coração.