Conheci
a Galícia na virada do outono para o inverno, quando esse mundo
forjado na face noroeste da Ibéria recolhia-se nos recintos das suas
construções de pedras, cobrindo a lenha para mantê-la seca,
protegendo-se da chuva, do frio e do vento que tomavam conta das ruas
tortuosas da região, como o musgo escuro que se alastra, recobrindo
os sulcos pré-históricos dos petróglifos cravados nas encostas dos
montes, no meio da mata.
A
Galícia é um mundo que, a mim, só se desvelou na penumbra, no
vento e na chuva. As intempéries, que num primeiro momento pareciam
barreiras impenetráveis à experiência e à vivência, criaram uma
forma particular de fazer ver o cosmos galego.
Dou-lhes
como exemplo o sítio de maior notoriedade da região: a cidade velha
de Santiago de Compostela.
Sob
a claridade do dia, vê-se turistas caminhando pelas ruas antigas,
vestidos com jaquetas de nylon fosforescentes, os troncos
travados em inclinação designada pelo peso das mochilas
impermeáveis das quais pendem garrafas de plástico amarradas por
cordões coloridos. É impossível não os notar, as armações
brilhantes de seus óculos, os smartwatches
contando-lhes o número de passos, as calorias, os amortecedores
esverdeados dos calçados, as telas brilhantes dos celulares que se
erguem acima das cabeças enquadrando a Praça do Obradoiro. Nessa
Santiago diurna e luminosa, vê-se as placas de sinalização e fitas
de isolamento indicando por onde transitar, determinando os rumos,
conduzindo o olhar, pastoreando a experiência.
Nessa
Santiago de luz e brilho os tons pálidos das rochas que se
empilham audaciosas em muralhas e paredes, criando esquinas e
encruzilhadas, que se sanfonam em escadas, que se arredondam em
colunas, inclinam-se em ladeiras e transformam-se em catedrais,
perdem a vida. As silhuetas de nylon e LED ofuscam as reentrâncias e
lisuras das pedras. Os automóveis enfileirados ocultam as fachadas
das construções antigas e as calçadas. O tempo do espírito
histórico estampado nos relevos e na textura mineral de Santiago de
Compostela resta encoberto pela velocidade brilhante do cotidiano
contemporâneo.
Debaixo
dos arcos da escadaria da Praça do Obradoiro, vi um gaiteiro apertar
o fole e ouvi o som grave e contínuo do ar criando um ambiente
solene para a aguda melodia. Mas a luz do dia mostrou a textura
sintética das vestimentas, o rosto entediado do músico, o brilho
plastificado do estojo no qual um homem colocava moedas com uma mão
enquanto tentava manter o gaiteiro enquadrado na selfie
com a outra; ao redor, vi pessoas esperando a melodia como se
esperassem um sanduíche no balcão de uma rede de fast-food.
Ouve-se
o som nítido das notas, mas a luz do dia não nos deixa escutar a
cultura milenar que vive no fole.
Com
o cair da noite e da chuva, com o frio e o vento, no entanto, pude
ver uma outra Santiago.
De
início, eu já não conseguia ler as placas, escritas em letras sem serifas, indicando as rotas, as
entradas e as saídas, os percursos predeterminados. Sumiram as fitas
de contenção das filas, os andaimes, o tráfego de veículos, as
vias se abriram. A Santiago noturna convida os corpos a inventarem
suas trilhas. No chão e nas paredes, as linhas de sombra e luz
formadas pelas lanternas penduradas à altura de quatro homens
mostram novos caminhos. São traçados transponíveis esses noturnos…
não são barreiras ou fronteiras da ditadura diurna. E as rochas
pálidas do dia, agora, molhadas pela chuva, refletem o brilho ocre
das lâmpadas. As paredes, as calçadas, as colunas, as vias, as
ladeiras, as escadas, na noite, ganham um brilho amarelado, de um
ouro velho, desgastado, recuperam a textura dos séculos.
Na
noite de Santiago vê-se mais as esquinas, as distâncias e os
ângulos dramáticos de uma pedra em relação à outra pelas sombras
que projetam. As paredes tornam-se cortinas entreabertas convidando o
olhar, as ruas tornam-se um palco e o mistério do que pode surgir a
cada encruzilhada assimétrica toma conta da cidade. Uma outra
Santiago, maior, com mais caminhos, mais misteriosa, mais teatral,
brota da penumbra.
A
chuva e o vento e o frio fazem com que menos gente caminhe pelas
ruas. Os poucos transeuntes se encolhem, vão mais próximos das
paredes, cobertos por casacos pesados e sóbrios, protegendo-se das
intempéries. Já não se vê as cores dos abrigos, dos calçados,
das garrafas plásticas. As mãos vão metidas dentro dos bolsos
junto com os brilhosos celulares. Os corpos tornam-se vultos e os
vultos não contradizem o tempo das pedras.
E
então, na escadaria da Praça do Obradoiro, vemos dois ou três
homens cujas sombras se confundem. Esses homens têm ao seu lado, no
chão, sobre um pedaço de papel, uma bola de pão galego, uma
garrafa de vinho e um par de taças. Misturados com seus instrumentos
musicais eles sopram e dedilham um som milenar que parece não sair
deles, mas dos arcos da escadaria, das pedras, do vento frio que
sopra por Santiago. Nenhuma selfie
captura essa canção entoada pelas sombras
A
noite anima nos vultos e nas pedras o espírito vivo da história. E
o que nelas ainda vive dos séculos, de repente, surge.
Na
manhã seguinte, não encontrarás mais essa Santiago de Compostela
que emerge das trevas.
Nas
palavras da poetisa galega Lupe Gómez:
As
rúas que busco
agora
desapareceron
a
noite pasada
Mas
a Galícia não é só Santiago. A Galícia é também a “Aldea”.
A que conheci e habitei por um mês chamava-se Brión.
Só
que Brión não é propriamente uma aldeia. É um pequeno reino. Um
reino sem rei, ou rainha, ou corte. Um reino que também conheci na
sombra, no vento, no frio e na chuva.
É
um reino formado por outros três reinos antigos que ali se fundiram:
o vegetal, o animal e o mineral.
Na
medicina tradicional chinesa há um ditado que diz: “O espírito
habita a energia. E a energia habita o corpo”. Corpo, energia,
espírito. Um guarda o outro formando a unidade que é o humano.
Na
Aldeia, o homem habita a pedra e a pedra habita a mata. Mata, pedra,
homem. Vegetal, mineral, animal. Um guarda o outro, formando a
unidade que é a aldeia.
No
inverno galego, dentro do oco das rochas, homens, mulheres, crianças
e gatos, acendem e rodeiam “o lume”.
O
lume é uma arte na galícia. Ou seria antes uma ciência? Não dei
conta de descobrir. Os galegos submetem a chama, o arder, a fumaça e
a lenha à uma observação de rigor científico, sabem o nível de
umidade da madeira pelo modo como estalam, conhecem o comportamento da
fumaça e o caminho que seguirá da chama até a chaminé, percebem a
quantidade de calor pela ardência da brasa, mas manejam esses
elementos como antigos mestres de ofício. Cada fogo que arde no
interior de um “hogar”
(lar) galego é uma criação artística.
Há
algo de misterioso, quase sagrado, cerimonial, no trato do lume.
E nessa atmosfera mística, ouve se o silêncio.
E nessa atmosfera mística, ouve se o silêncio.
O
silêncio galego é gestado dentro da penumbra da pedra, em torno do
fogo.
Vivendo
o frio da “Aldea”,
ao redor do lume, notei que os galegos não se incomodam com os
longos instantes de quietude que surgem no meio das conversas e que são tão
constrangedores na ruidosa e veroz comunicação dos dias atuais.
Suspeito que os galegos suportam o silêncio porque não aprenderam a
falar sob a luz, onde tudo precisa parecer estar sempre às claras,
tudo precisa parecer já dito, explicado. Não. Tenho a impressão de
que os galegos aprenderam a falar no lusco-fusco ao redor da lareira,
acolhidos pela quietude do mineral, ouvindo o estalar da lenha que só
é audível dentro do halo tênue criado pela chama e onde há muita
coisa não dita, onde há coisas que não podem ser expressas, onde a
palavra, por vezes, pode causar má compreensão e mal-entendidos.
Esse lugar rarefeito, traçado em conjunto pelo lume e pela sombra,
forja o calar galego.
O
espírito da aldeia, esse que arde como um lume, habita a pedra e
essa pedra habita a mata que cobre o monte... Em Brión, tudo é um –
homem, rocha e mata.
E
para que se faça sentir essa unidade é necessário o frio e o vento
e a chuva da Galícia. É só nesse clima que se vê o brilho dessa
faceta galega.
A
Galícia é uma joia. Agora, não é uma joia translúcida, lapidada
em milhares de faces para refletir infinitos pontos de luz. O
precioso na Galícia não é o cristal, ou o diamante, ou o rubi, é
o “acibeche”
uma pedra que, em verdade, é uma árvore fossilizada, uma árvore
tornada rocha depois de milhões de anos de intempéries.
O
“acibeche”
é um mineral escuro, não reflete a luz, mas a sombra. Sua matéria
não é transparente, mas se a observar com cuidado, notará que é
profunda. É a síntese dos elementos naturais da Aldea: as intempéries, a
sombra, o tempo, o vegetal e o mineral. Falta-lhe o homem para ser a
perfeita metáfora da Galícia.
E
eu conheci uma ourives galega, Susi Gesto, que transformava essas
gemas em joias, fundindo o tempo, a mata e a rocha ao homem. Em sua
oficina pairava um ar de alquimia, uma atmosfera simbólica. Ali não
se lapidava o luxo artificial, o supérfluo, lapidava-se o espírito
galego, o espírito da “Aldea”.
Ganhei de Susi um pedaço bruto de “acibeche”,
um pedaço da mata e da rocha galega; um pedaço da sombra e do
silêncio da aldeia. Toda vez que o tenho em minhas mãos, lembro-me
de Rianxo, do tempo que passei em Brión, ao pé do lume, caminhando
pelos montes, provando do pão e da água galega.
A
arte de panificação galega....
As
padarias no Brasil, como quase toda forma de comércio nacional,
exibem seus pães e produtos como se estivessem mostrando ao mundo o
último modelo de iPhone:
muitas luzes, espelhos, vidros reluzentes. Mas o trigo é
transgênico, a água tem pesticidas, a mão de obra por trás
daquele pão perde gradualmente os seus direitos trabalhistas e de
seguridade social.
O
brilho esconde.
Na
Galícia, o trigo não é transgênico (“transgênico
nunca” dizem as
embalagens), a água vem de montes protegidos, como os direitos dos
cidadãos, e esse pão não é exposto como objeto de luxo. A padaria
onde comprei pão durante o mês que vivi na aldeia era uma
construção de pedra e tinha uma iluminação normal, residencial,
poucos watts. A dona Fina olhava os pães e os escolhia pelo som que
faziam ao se apertar a crosta. “Esse
está bom”. O
alimento não é apenas a aparência sob centenas de watts, é a
textura, o cheiro, o som, a confiança, entre o cliente e o padeiro,
nos ingredientes, no modo de preparo, naquilo que não se vê.
Ouço
ainda o barulho da chuva pingando pelos muros de pedras e “hórreos”
(espigueiros), ouço meus pés frios e o vento em minhas orelhas
quando, pela manhã, ia comprar uma bola de pão na aldeia de Brión.
A
aldeia são também os caminhos tortuosos.
Na
aldeia de Brión, por exemplo, os rumos respeitam o desenho dos
montes, das saliências das pedras e a cada curva encontra-se um
cruzeiro. Dizem ser uma herança celta, apropriada por romanos,
posteriormente sincretizada pelo cristianismo. Onde os caminhos se
cruzam há ali um espírito, seja de que cultura for. E dali se pode
tomar diversos rumos.
Às
margens dessas vias tortuosas, rompendo o tempo e o espaço, também
surgem os antigos petróglifos, inscrições milenares de culturas
passadas que habitaram a região e deixaram registrados seus rituais,
suas histórias. Essas grandes rochas são reentrâncias na
topografia, um afastamento das estradas, das ruas, da urbe. São uma
fissura no mapa, recantos fora da lógica cartográfica.
E
essa estranha topografia galega reflete-se nas conversas. O diálogo
galego não se dá em linhas retas, não transita em avenidas ou
autoestradas, não têm faixas duplas. Não, o diálogo galego, pelo
contrário, é curvo, repleto de sinuosidades orgânicas, não dessas
viradas artificiais de noventa graus que recortam as cidades, o
diálogo galego se dá por vias estreitas, íntimas, e que aceitam o
tráfego em direções opostas na mesma viela.
O
galego conduz a conversa seguindo a topografia da região.
Roberto
Abuín, por exemplo, um dos editores que me recebeu em Rianxo, era um
cruzeiro. Sempre que as conversas chegavam nele tomavam outro rumo,
tortuoso, mas de alguma forma mantinham uma continuidade orgânica
com o que vinha sendo dito. Os caminhos dos diálogos se
multiplicavam em Roberto, sem quebrar a conversa, indo às vezes por
matas, pelo interior dos montes, pela beira do mar...
Rafael
Xesús, outro editor da Axóuxere, por sua vez, funcionava como um
petróglifo nas discussões. Ao chegar neste místico galego, a
conversa dava um salto, saindo do tempo e do espaço que vinha
seguindo, abandonando o discurso silogístico, acadêmico, e invocava
caminhos mitológicos, misteriosos, enigmáticos, atemporais... como
os petróglifos.
A
Aldeia é, afinal, um jeito único de se conversar.
No
inverno galego tudo é íntimo, protegido do clima agreste, da chuva
e do vento e do frio. As diferenças se aninham sob a pedra, ao redor
do lume, os indivíduos percebem que não vivem em função de seus
eus, mas em função do clima, da temperatura, do tempo, do outro.
Tudo é feminino, no sentido de que tudo se resolve em vínculos, em
afetos e não em alienação da cisão entre sujeito e objeto,
sujeito e mundo… essa alienação falocêntrica. A aldeia é
matriarcal.
E
foi assim que essa Galícia se desvelou para mim, na penumbra, no
frio, no vento e na chuva.
Não
sei se a Galícia é realmente isso que lhes descrevi. Talvez meu
olhar tenha sido orientado pelos editores da Axóuxere, que, numa
jornada iniciática, levaram-me ao cume de um monte sibilante, numa
noite fria, escura e chuvosa, e no mais absoluto breu apontaram-me um
espaço negro, rodeado de tortas linhas luminosas: os pontilhados de
luz eram as aldeias que contornavam a ria, um braço do mar que entra
costa adentro, o Mediterrâneo galego, ao redor do qual nasceu a
Língua, essa que falo e na qual escrevo.
Aprendi
a ver a Galícia assim, na sombra, no frio, no vento e na chuva. Por
isso, sou imensamente grato aos amigos Roberto Abuín Gonzales e
Rafael Xesús, bem como à editora Axóuxere, à Deputación da
Coruña e ao Conselho de Rianxo, que me convidaram para sua
residência de escritores.