13 de abril de 2020

Leonardo Contra Paris


     O livro “Leonardo Contra Paris” é uma jornada pelo ego do personagem principal. Não é uma investigação da consciência, nem um ensaio sobre os conteúdos inconscientes de Leonardo Pontevedra. Não é um livro de autoconhecimento, nem de iluminação espiritual de Leonardo. É uma “egotrip”… se é que existe tal gênero literário... Há controvérsias. Supondo que sim, exista, o livro na verdade é uma “bad egotrip”, uma “egotrip” que dá ruim.
      Essa expressão “egotrip” pode ser entendida como uma autocelebração do próprio ego… absolutamente redundante e autorreferente: a gíria em inglês vai nesse sentido. Mas não é o caso… não há esse caráter masturbatório no texto de Márcio-André… “Leonardo Contra Paris” é uma jornada (trip) que ruma pelo ego. O ego é a paisagem, é o contexto, é o tempo e o espaço da narrativa… como a estrada nos romances “roadtrip”. É nesse sentido que digo que o livro é uma "egotrip".
       Acho bom esclarecer isso logo no início para ninguém ficar pensando: “Peraí… esse não é o significado dessa expressão… em inglês tem uma gíria que significa…etc”.
       Não sei se o/a leitor(a) já teve uma “egotrip”… perdendo-se nos rumos do eu… mas se já teve, é de fé que em algum momento ela se transformou numa “bad egotrip”. Toda “egotrip” que já acompanhei uma hora degringolou e a coisa ficou feia. Feia! Feia de perder amigos de longa data, de desfazer família, de cair em vício, de perder a noção das coisas… etc. Se a tua não virou… talvez seja porque ela ainda não acabou... vai desandar. Paciência… e força!
       O negócio das “egotrips” é que elas são difíceis de explicar. Explicar então como, de repente, elas viram uma “bad”, como e quando e para aonde elas desandam… piorou.
      Via de regra a gente vai contando as mesmas coisas, do mesmo jeito, sobre a vida… como se a pessoa que está ouvindo a história pudesse perceber quando entramos na “egotrip” e quando essa “egotrip” deu ruim… nunca percebem.
        E a explicação é sempre essa chatice… de lei. É... como se fosse… uma outra “egotrip”.
      A minha “egotrip” e as que acompanhei nessa vida caíram sempre nessa sinuca. Resumindo: a coisa é chata, repetitiva e sem muito sentido. 
       Eis o problema de se meter a falar de uma “egotrip”.
      Mas, voltando ao livro.
     É uma “egotrip”. Desde os primeiros capítulos sabemos que é uma. O que pega em “Leonardo Contra Paris” é quando, logo no início, você (leitor) se dá conta que o autor inventou um jeito interessante de desenrolar esse gênero literário. O cara deu um jeito de navegar por essa classe de narrativa sem cair nos problemas recorrentes desse tipo de história.
      Por exemplo, o autor abre mão das regras manualescas de determinar com precisão quem é Leonardo Pontevedra… Márcio-André assume que se é uma “egotrip”… não precisa construir minuciosamente o ego fictício do personagem… o que já exclui o aborrecimento fundamental que constitui as “egotrips”. Mas o leitor não fica desamparado. Sabemos que Leonardo é um escritor, casado, tem algumas relações… mas não sabemos o que exatamente ele escreve, nem detalhes de qualquer dos seus relacionamentos. Não sabemos o que move sua escrita, não sabemos minúcias de sua história pessoal.
      O foco do livro não é determinar em qual ego se está viajando… mas como se está viajando pelo ego disponível.
       Márcio-André reinventa o gênero literário em “Leonardo Contra Paris”? Acho que não. Mas com certeza ele esclarece a forma de se contar essas jornadas, evitando o tédio que lhes é inerente.
      O jeito como a “egotrip” do personagem é construída nesse romance é tão claro e evita tão bem os percalços do “gênero”, que dá pra dizer que “Leonardo Contra Paris” é quase um manual narrativo das “egotrips”…. Para que não se caia numa “egotrip”(a gíria)!
      Pelo amor de Deus, não me entendam mal… Não estou falando aqui de curvas narrativas, arcos, clímax, pontos de viradas… como se a história, a “trip”, fosse um gráfico de contaminação por Coronavírus. Não. Não é nisso que consiste o mérito do livro. “Leonardo Contra Paris” é interessante porque torna evidente o que tem que ser colocado em questão numa “egotrip”.
      A história da jornada pelo ego de Leonardo Pontevedra, curiosamente, não se perde nas armadilhas do próprio ego.
      Vou tentar aqui compor uma metáfora de como o romance de Márcio-André destrincha e revela o gênero literário.
       Lendo o romance, dei-me conta de que toda “egotrip” se estrutura como uma Galáxia.
      Essa imagem pode ajudar quem teve uma “egotrip” ou está pensando em escrever uma a pensar sobre sua própria jornada. Ao menos a mim, esclareceu muito a questão.
      Agora, toda galáxia tem uma maior concentração de matéria (planetas, estrelas, nebulosas, etc) em seu centro e esses elementos se mantém ali em razão da força centrípeta de um buraco negro hipotético que repousa no centro de cada galáxia.
      Quanto mais próximos os astros estão do centro, mais são atraídos por ele. O vazio central faz acelerar para junto de si a matéria que o rodeia.
      Vejam bem… o buraco negro é hipotético, mas o comportamento da matéria, sua concentração nas cercanias do centro, a aceleração centrípeta, tudo indica que ele existe e que tudo gira ao seu redor.
      Essa dinâmica cósmica também opera na viagem em direção ao buraco negro do ego.
     A concentração de matéria é maior quanto mais próximo se está do ego… No caso do artista Leonardo Pontevedra, quanto mais nos aproximamos do ego do personagem, na “egotrip” do romance, maior a quantidade de matéria (palestras em universidades, relacionamentos com editores e jornalistas, admiração de alunas, influência nos meios culturais, prêmios, publicações, colunas em jornais, muitas curtidas nas redes sociais, milhares de compartilhamentos…).
     Márcio-André nunca nos diz no que consiste o ego de Leonardo Pontevedra, mas pelo comportamento da matéria que o circunda é possível deduzir o imenso vazio que tudo atrai para suas cercanias.
      A “egotrip” pela qual o autor Márcio-André nos leva mostra o poder da força centrípeta gerada pelo centro do ego do personagem, um centro que também é geográfico (Rio de Janeiro, Leblon, Sorbonne, Paris, França) e sócio-econômico (Rio de Janeiro, Leblon, Sorbonne, Paris, França).
      A força de atração do ego, como um buraco negro, mantém numa vertiginosa aceleração centrípeta ao redor do vazio vidas, relações, planos, expectativas, frustrações, hábitos, crenças, práticas, éticas, etc.
       Agora, se nos afastamos do centro da galáxia e rumamos em direção à sua periferia, a força centrípeta diminui e a matéria passa a sofrer a influência de uma força em direção oposta, centrífuga, que a expele para fora do centro, para os confins da galáxia.
        Na periferia da galáxia, a matéria é mais rarefeita e tende a se afastar dissipando-se no espaço.
     Na “egotrip” rumo à periferia, Márcio-André descreve como a força de coesão do ego do personagem Leonardo Pontevedra vai se perdendo. Não é fácil sair da influência da força centrípeta do ego; o buraco negro hipotético possui uma força gravitacional de proporções cósmicas… mas quando, na narrativa, consegue-se estabelecer uma certa distância desse vazio, desse centro egoico que geograficamente se situa no Leblon e na Sorbonne, é possível ver a quantidade de matéria se dispersar na vida do personagem à medida que se estabelece em São João de Meriti (diminuem as curtidas, somem os compartilhamentos, as relações ganham outras feições, não há prêmios literários, não há o culto do ego).
      O personagem que antes vivia em torno da imagem criada por si, planejada, meticulosamente gerida, passa a viver em função de outras histórias, algumas sem sentido, outras alheias à sua vontade.
       Mas, por distante que esteja do vazio do ego, Leonardo não escapa de si. Lembrem-se que o livro é uma “egotrip” e não um livro sobre a auto-iluminação, não é um livro de auto-ajuda, Leonardo não se liberta, nem se redime, ele vagueia pelos extremos do próprio ego, mas não o supera.
        De fato, cientistas calcularam a massa total de matéria da Galáxia e concluíram que os astros nos limites da periferia cósmica estariam sob uma aceleração centrífuga tão grande que deveriam ser lançados para fora, escapando por completo da força centrífuga do buraco negro central.
      Por alguma razão, no entanto, a ciência verificou que os astros periféricos mantinham-se presos nos limites galáticos.
      O que os mantinha ali?
      Foi quando se aventou a hipótese da matéria negra. Uma matéria que não seria matéria, não teria peso ou massa detectável, mas que existiria e possuiria força gravitacional suficiente para atrair os corpos celestes que estão nos confins da galáxia.
      Há algo invisível, contraditório, imensurável, que mantém a coesão da galáxia.
      Na “egotrip” não é diferente.
     Algo nos mantém presos a nós mesmos, ainda que estejamos afastados do centro do ego, ainda que estejamos sujeitos à alucinante aceleração centrípeta da periferia que deveria lançar-nos para fora de quem somos, ainda que neguemos nosso próprio eu... Há algo que não nos deixa escapar. Mesmo que esse “algo” seja absurdo, contraditório, invisível, ele está lá.
      Leonardo, no romance, encontra o seu absurdo; o absurdo que o mantém ancorado em si mesmo.
Toda “egotrip” é uma “bad egotrip”… seja rumo ao buraco negro ao redor do qual gira toda a matéria, seja rumo à periferia de si, onde o que se quer é perder-se de si. Toda “egotrip” é uma “bad egotrip” porque está ancorada no vazio… seja no vazio do ego, seja no vazio do absurdo.
     Márcio-André nos apresenta essa angustiante experiência em “Leonardo Contra Paris” de maneira instigante, como uma jornada capaz de distorcer o tempo e o espaço. Uma distorção bem trabalhada e que torna possível vislumbrarmos o cosmos egoico de Leonardo Pontevedra. Uma distorção sem a qual a “egotrip” seria infindável, lenta, tediosa e não nos permitiria ver a verdadeira forma da jornada.
      Mas e o final da “egotrip”?
      Não há final. O vazio da experiência – no seu centro e no seu entorno – sem meio, nem fim, nem início é a estrutura da “egotrip”. Como esses quebra cabeças impossíveis, em que se tem que tirar um anel de aço preso no interior de duas alças de metal… o anel nunca vai sair dali… Não há uma posição inicial ou final do anel. O que podemos fazer - quando muito - é deixar o jogo de lado. Mas uma vez no jogo, a experiência é de angustia, de um tempo que se esvai numa tarefa sem fim. Às vezes temos a sensação de que o anel está menos preso às alças, outras vezes sentimos que ele está mais enroscado nelas… mas ele jamais está solto.
       Essa é a experiência que o livro “Leonardo Contra Paris” nos proporciona.
       Por certo, não é um romance de entretenimento.
     Aos que não podem sair de casa, aos que podem, mas conscientemente permanecem em isolamento e aos que precisam sair, mas buscam tomar todas as precauções, convido-os a essa viagem para dentro de si proposta pelo livro de Márcio-André.
       Aos demais, que estão por aí, seguindo os comandos do Presidente da República, abandonem essa“egotrip” e leiam o livro.