O
livro “Leonardo Contra Paris” é uma jornada pelo ego do
personagem principal. Não é uma investigação da consciência, nem
um ensaio sobre os conteúdos inconscientes de Leonardo Pontevedra.
Não é um livro de autoconhecimento, nem de iluminação espiritual
de Leonardo. É uma “egotrip”… se é que existe tal gênero
literário... Há controvérsias. Supondo que sim, exista, o livro na verdade é uma “bad egotrip”, uma “egotrip”
que dá ruim.
Essa
expressão “egotrip” pode ser entendida como uma
autocelebração do próprio ego… absolutamente redundante e autorreferente: a gíria em inglês vai nesse
sentido. Mas não é o caso… não há esse caráter masturbatório
no texto de Márcio-André… “Leonardo Contra Paris” é uma jornada (trip) que ruma pelo
ego. O ego é a paisagem, é o contexto, é o tempo e o espaço da
narrativa… como a estrada nos romances “roadtrip”. É nesse sentido que digo que o livro é uma "egotrip".
Acho
bom esclarecer isso logo no início para ninguém ficar pensando:
“Peraí… esse não é o significado dessa expressão… em inglês
tem uma gíria que significa…etc”.
Não
sei se o/a leitor(a) já teve uma “egotrip”… perdendo-se nos
rumos do eu… mas se já teve, é de fé que em algum momento ela se
transformou numa “bad egotrip”. Toda “egotrip” que já
acompanhei uma hora degringolou e a coisa ficou feia. Feia! Feia de perder
amigos de longa data, de desfazer família, de cair em vício, de perder a noção das coisas… etc.
Se a tua não virou… talvez seja porque ela ainda não acabou...
vai desandar. Paciência… e força!
O
negócio das “egotrips” é que elas são difíceis de explicar.
Explicar então como, de repente, elas viram uma “bad”, como e quando e para aonde elas desandam… piorou.
Via
de regra a gente vai contando as mesmas coisas, do mesmo jeito, sobre
a vida… como se a pessoa que está ouvindo a história pudesse
perceber quando entramos na “egotrip” e quando essa “egotrip”
deu ruim… nunca percebem.
E a
explicação é sempre essa chatice… de lei. É... como se fosse…
uma outra “egotrip”.
A
minha “egotrip” e as que acompanhei nessa vida caíram sempre
nessa sinuca. Resumindo: a coisa é chata, repetitiva e sem muito
sentido.
Eis
o problema de se meter a falar de uma “egotrip”.
Mas,
voltando ao livro.
É
uma “egotrip”. Desde os primeiros capítulos sabemos que é uma.
O que pega em “Leonardo Contra Paris” é quando, logo no início,
você (leitor) se dá conta que o autor inventou um
jeito interessante de desenrolar esse gênero literário. O cara deu
um jeito de navegar por essa classe de narrativa sem cair nos
problemas recorrentes desse tipo de história.
Por
exemplo, o autor abre mão das regras manualescas de determinar com
precisão quem é Leonardo Pontevedra… Márcio-André assume que se
é uma “egotrip”… não precisa construir minuciosamente o ego
fictício do personagem… o que já exclui o aborrecimento
fundamental que constitui as “egotrips”. Mas o leitor não fica desamparado.
Sabemos que Leonardo é um escritor, casado, tem algumas relações…
mas não sabemos o que exatamente ele escreve, nem detalhes de
qualquer dos seus relacionamentos. Não sabemos o que move sua
escrita, não sabemos minúcias de sua história pessoal.
O
foco do livro não é determinar em qual ego se está viajando… mas
como se está viajando pelo ego disponível.
Márcio-André reinventa o gênero literário em “Leonardo Contra Paris”? Acho
que não. Mas com certeza ele esclarece a forma de se contar essas
jornadas, evitando o tédio que lhes é inerente.
O
jeito como a “egotrip” do personagem é construída nesse romance é
tão claro e evita tão bem os percalços do “gênero”, que dá
pra dizer que “Leonardo Contra Paris” é quase um manual
narrativo das “egotrips”…. Para que não se caia numa
“egotrip”(a gíria)!
Pelo
amor de Deus, não me entendam mal… Não estou falando aqui de curvas narrativas, arcos, clímax, pontos de viradas…
como se a história, a “trip”, fosse um gráfico de contaminação
por Coronavírus. Não. Não é nisso que consiste o mérito do
livro. “Leonardo Contra Paris” é interessante porque torna
evidente o que tem que ser colocado em questão numa “egotrip”.
A
história da jornada pelo ego de Leonardo Pontevedra,
curiosamente, não se perde nas armadilhas do próprio ego.
Vou
tentar aqui compor uma metáfora de como o romance de Márcio-André
destrincha e revela o gênero literário.
Lendo
o romance, dei-me conta de que toda “egotrip” se estrutura como
uma Galáxia.
Essa
imagem pode ajudar quem teve uma “egotrip” ou está pensando em escrever uma a pensar sobre sua
própria jornada. Ao menos a mim, esclareceu muito a questão.
Agora,
toda galáxia tem uma maior concentração de matéria (planetas,
estrelas, nebulosas, etc) em seu centro e esses elementos se mantém
ali em razão da força centrípeta de um buraco negro hipotético
que repousa no centro de cada galáxia.
Quanto
mais próximos os astros estão do centro, mais são atraídos por
ele. O vazio central faz acelerar para junto de si a matéria que o
rodeia.
Vejam
bem… o buraco negro é hipotético, mas o comportamento da matéria,
sua concentração nas cercanias do centro, a aceleração centrípeta, tudo indica
que ele existe e que tudo gira ao seu redor.
Essa
dinâmica cósmica também opera na viagem em direção ao buraco
negro do ego.
A
concentração de matéria é maior quanto mais próximo se está do
ego… No caso do artista Leonardo Pontevedra, quanto mais nos
aproximamos do ego do personagem, na “egotrip” do romance, maior
a quantidade de matéria (palestras em universidades, relacionamentos
com editores e jornalistas, admiração de alunas, influência nos
meios culturais, prêmios, publicações, colunas em jornais, muitas
curtidas nas redes sociais, milhares de compartilhamentos…).
Márcio-André
nunca nos diz no que consiste o ego de Leonardo Pontevedra, mas
pelo comportamento da matéria que o circunda é possível deduzir o imenso vazio
que tudo atrai para suas cercanias.
A
“egotrip” pela qual o autor Márcio-André nos leva mostra o
poder da força centrípeta gerada pelo centro do ego do personagem,
um centro que também é geográfico (Rio de Janeiro, Leblon,
Sorbonne, Paris, França) e sócio-econômico (Rio de Janeiro,
Leblon, Sorbonne, Paris, França).
A
força de atração do ego, como um buraco negro, mantém numa
vertiginosa aceleração centrípeta ao redor do vazio vidas,
relações, planos, expectativas, frustrações, hábitos, crenças,
práticas, éticas, etc.
Agora,
se nos afastamos do centro da galáxia e rumamos em direção à sua
periferia, a força centrípeta diminui e a matéria passa a sofrer a
influência de uma força em direção oposta, centrífuga, que a expele para fora do
centro, para os confins da galáxia.
Na
periferia da galáxia, a matéria é mais rarefeita e tende a se
afastar dissipando-se no espaço.
Na
“egotrip” rumo à periferia, Márcio-André descreve como a força
de coesão do ego do personagem Leonardo Pontevedra vai se perdendo.
Não é fácil sair da influência da força centrípeta do ego; o
buraco negro hipotético possui uma força gravitacional de
proporções cósmicas… mas quando, na narrativa, consegue-se
estabelecer uma certa distância desse vazio, desse centro egoico que
geograficamente se situa no Leblon e na Sorbonne, é possível ver a
quantidade de matéria se dispersar na vida do personagem à medida
que se estabelece em São João de Meriti (diminuem as curtidas,
somem os compartilhamentos, as relações ganham outras feições,
não há prêmios literários, não há o culto do ego).
O
personagem que antes vivia em torno da imagem criada por si,
planejada, meticulosamente gerida, passa a viver em função de
outras histórias, algumas sem sentido, outras alheias à sua
vontade.
Mas,
por distante que esteja do vazio do ego, Leonardo não escapa de si.
Lembrem-se que o livro é uma “egotrip” e não um livro sobre a
auto-iluminação, não é um livro de auto-ajuda, Leonardo não se
liberta, nem se redime, ele vagueia pelos extremos do próprio ego,
mas não o supera.
De
fato, cientistas calcularam a massa total de matéria da Galáxia e
concluíram que os astros nos limites da periferia cósmica estariam
sob uma aceleração centrífuga tão grande que deveriam ser
lançados para fora, escapando por completo da força centrífuga do
buraco negro central.
Por
alguma razão, no entanto, a ciência verificou que os astros periféricos
mantinham-se presos nos limites galáticos.
O
que os mantinha ali?
Foi
quando se aventou a hipótese da matéria negra. Uma matéria que não
seria matéria, não teria peso ou massa detectável, mas que
existiria e possuiria força gravitacional suficiente para atrair os
corpos celestes que estão nos confins da galáxia.
Há
algo invisível, contraditório, imensurável, que mantém a coesão
da galáxia.
Na
“egotrip” não é diferente.
Algo
nos mantém presos a nós mesmos, ainda que estejamos afastados
do centro do ego, ainda que estejamos sujeitos à alucinante
aceleração centrípeta da periferia que deveria lançar-nos para
fora de quem somos, ainda que neguemos nosso próprio eu... Há algo
que não nos deixa escapar. Mesmo que esse “algo” seja absurdo,
contraditório, invisível, ele está lá.
Leonardo,
no romance, encontra o seu absurdo; o absurdo que o mantém ancorado
em si mesmo.
Toda
“egotrip” é uma “bad egotrip”… seja rumo ao buraco negro
ao redor do qual gira toda a matéria, seja rumo à periferia de si,
onde o que se quer é perder-se de si. Toda “egotrip” é uma “bad
egotrip” porque está ancorada no vazio… seja no vazio do ego,
seja no vazio do absurdo.
Márcio-André
nos apresenta essa angustiante experiência em “Leonardo Contra
Paris” de maneira instigante, como uma jornada capaz de distorcer o
tempo e o espaço. Uma distorção bem trabalhada e que torna
possível vislumbrarmos o cosmos egoico de Leonardo Pontevedra. Uma
distorção sem a qual a “egotrip” seria infindável, lenta,
tediosa e não nos permitiria ver a verdadeira forma da jornada.
Mas
e o final da “egotrip”?
Não
há final. O vazio da experiência – no seu centro e no seu entorno
– sem meio, nem fim, nem início é a estrutura da “egotrip”.
Como esses quebra cabeças impossíveis, em que se tem que tirar um
anel de aço preso no interior de duas alças de metal… o anel
nunca vai sair dali… Não há uma posição inicial ou final do
anel. O que podemos fazer - quando muito - é deixar o jogo de lado. Mas uma vez no
jogo, a experiência é de angustia, de um tempo que se esvai numa
tarefa sem fim. Às vezes temos a sensação de que o anel está
menos preso às alças, outras vezes sentimos que ele está mais
enroscado nelas… mas ele jamais está solto.
Essa
é a experiência que o livro “Leonardo Contra Paris” nos
proporciona.
Por
certo, não é um romance de entretenimento.
Aos
que não podem sair de casa, aos que podem, mas conscientemente
permanecem em isolamento e aos que precisam sair, mas buscam tomar todas as precauções, convido-os a essa viagem para dentro de si
proposta pelo livro de Márcio-André.
Aos demais, que estão por aí, seguindo os comandos do Presidente da República, abandonem essa“egotrip” e leiam o livro.