Um texto, quando o lemos, nos remete a nós mesmos, ou nos remete para além de nós mesmos? E esse alcance da obra para além o para aquém do sujeito fica apenas a cargo do leitor? Esse escopo do impacto de um texto é uma questão individual? Ou não?
Essas perguntas de caráter semiótico, para lá do problema do leitor, do autor ou da obra, podem ser colocadas também para as editoras…ou, ao menos, para as curadorias preocupadas não apenas com respostas comercias, mas com respostas culturais.
Em 2019, por sugestão de um dos editores da Confraria do Vento, o amigo Márcio-André de Sousa Haz, participei da Residência de Escritores promovida pela editora independente galega Axóuxere, na aldeia de Rianxo, Espanha.
Nessa aldeia da Galícia, descobri uma editora preocupada com a autonomia e a sobrevivência da cultura galega. Uma cultura que está se perdendo lentamente em razão dos valores e condições impostos pela contemporaneidade. A língua galega, por exemplo, aos poucos está morrendo devido à influência e imposição política da língua espanhola. As instituições, os jovens, as publicações, em seus usos, aos poucos, cedem espaço para a colonização da linguagem local.
Além disso, é visível que o vínculo com a terra, com a mata, com as tradições e mitos, outrora muito fortes e presentes na região, também se perdem nas aldeias cada vez mais esvaziadas e envelhecidas da Galícia.
Diante desse cenário social de alienação, de desagregação cultural, a Editora Axóuxere firmou posição no sentido de lançar textos que remetam o leitor não apenas para si mesmo, mas para além de si.
Trata-se claramente de uma escolha editorial. Uma escolha por oferecer aos leitores obras que os lancem para além de si mesmos, de suas determinações, para além da realidade aparentemente desfragmentada e fortemente alienante que busca se impor sobre as características e as raízes culturais de um povo e de uma região.
Os editores da Axóuxere criaram dentro de seu catálogo um selo específico, chamado Clío (musa grega que convida para a reflexão sobre os fatos históricos) que tem como foco publicações preocupadas em discutir os vínculos humanos com a diferença, com a natureza, com os animais, repensar o estar no mundo. São obras que buscam pensar o sujeito para além de si, desde as suas relações com a coletividade e com o ambiente que os envolve e determina.
Essa disposição para refletir, proposta pelo selo editorial Clío, é a condição para que o leitor repare mais no seu entorno e nas particularidades da própria experiência subjetiva, e possa estabelecer um vínculo mais profundo com aquilo que se está perdendo com o lento esquecimento de si. Não se trata de recuperar uma Galícia passada, mas de repensar as possibilidades, presentes e futuras, para uma Galícia enraizada na consciência de suas origens humanas e naturais.
Obras como “Chamamento”, “Bolo’Bolo” e “Zona Temporariamente Autônoma”, lançadas pelo selo, convidam o leitor a pensar a realidade e a sua própria condição no mundo segundo outros conceitos, segundo conceitos que nos libertam dos medos, incertezas, vergonhas e aprisionamentos da alienação de nossa dimensão comunitária e de nossos vínculos com o rural, com a natureza.
Ou seja, pensar para além de si, pode ser também uma escolha editorial
Pois do outro lado do Atlântico, num outro país que também vê os afetos, os vínculos com a diferença e as relações com o ambiente se desfragmentarem, uma outra editora independente começa agora uma coleção com o objetivo claro de reconstruir ou, ao menos, refletir sobre a angústia causada por essa vida desfragmentada, convidando-nos a pensar para além de nós mesmo, como sujeitos inseridos numa coletividade múltipla e inseridos num mundo natural, num corpo vivo, em relação de estreita interdependência com outros corpos e com a natureza.
A coleção Biosférica lançada pela editora Confraria do Vento inicia-se com um livro de Regina Schöpke: “As Origens da Opressão: A Escravidão Humana e Animal”.
O livro de Regina dá o tom do que será esse novo selo da Confraria. “As Origens da Opressão”, fundamentalmente, nos mostra como somos seres incompletos quando abandonamos nossos vínculos com a alteridade e com a natureza. Mas a obra não aponta apenas a incompletude, não restringe-se apenas a dizer “o rei está nu”. Para além disso, o texto de Regina mostra a profunda vergonha, a angústia quase insuportável, a raiva e a perversidade irracionais que decorrem da constatação da nudez que se supunha oculta não apenas pela ignorância, mas pela conivência de todos.
“As Origens da Opressão” busca mostrar como uma vida incompleta, carente de vínculos com outros seres humanos, com as diferenças que constituem aquilo que é verdadeiramente humano, gera sujeitos com vazios de tal ordem que não podem ser preenchidos. Vazios que recorrerão com engenho a todos os recursos disponíveis para serem tamponados, mesmo à violência – se preciso for – para consigo mesmo e para com o outo; seja esse outro, outro corpo, outro gênero, outra raça, outra espécie, outro reino.
“(…) o que podemos concluir a partir disso é que, mais perigosa que a ignorância, é a inteligência sem sensibilidade, ou seja, um homem inteligente e sem sentimento pode fazer coisas que transcendem os males da ignorância”.
Um sujeito incompleto, buscará uma explicação… ou melhor, uma justificativa da realidade que ampare essa tentativa desesperada de preenchimento de um vazio insaciável, um vazio violento e, por vezes, perverso contra a alteridade.
“(…) os homens inventam suas verdades sem ter o menor interesse de chegar ao seu fundo mais sombrio, ou mesmo chegar ao fundo da própria realidade. São verdades que lhes servem bem, que não lhes causam mal algum”.
Há um conto de Jorge Luis Borges, chamado “O Rigor da Ciência”, em que se narra a obsessão do desenvolvimento da ciência cartográfica num reino imaginário. Nesse conto, o colégio de cartógrafos, cada vez mais obcecado com a reprodução da realidade de acordo com os rigores científicos, elabora um mapa em tamanho real do império que coincide ponto a ponto com a extensão territorial do País.
É uma metáfora da imposição da ciência sobre a realidade.
No livro “Zona Temporariamente Autônoma”, publicado pela editora Axóuxere na coleção Clío, o autor Hakim Bey nos chama a atenção para a diferença fundamental entre o mapa e o território.
O mapa é uma interpretação da realidade que busca se impor às determinações do território. Não existem fronteiras no território, mas elas estão bem definidas no mapa. Recentemente a justiça brasileira tentou definir o que seria o “território tradicionalmente ocupado pelos povos indígenas”, mas não olhou para o território e sim tentou impor um mapa à ancestralidade de uma cultura. O mapa é um discurso de poder. Há uma diferença fundamental em analisar o mapa topográfico e caminhar pelos morros de uma região, sentindo arder os músculos das canelas e o coração pulsar mais forte na garganta em razão da inclinação do terreno.
O mapa não é o território. O mapa nos aliena do território.
O livro de Regina Schöpke nos mostra que não apenas o território está mapeado e o vivenciamos segundo a cartografia, mas que as relações sociais naquilo que têm de mais profundo, os afetos, também passaram a ser vividas segundo o mapa e não segundo o território. E Regina segue no seu texto expondo que, do mesmo modo, nossas relações com a nossa alimentação, com o que comemos, estão mapeadas e nos orientamos segundo essas cartas, sem olharmos para a realidade, para o território.
“As Origens da Opressão” mostra que internalizamos os mapas, esses discursos de poder, e os seguimos sem notar as características e as peculiaridades do território:
“(…) Nietzsche diz que ‘é preciso libertar a vida’, e ele não está falando, como muitos entendem, de libertar o homem puramente. Ele se refere à vida que foi aprisionada pelo homem e também no próprio homem. E não existe outra maneira de libertar a vida senão pela própria reconciliação com ela, pela sua afirmação”.
Não sabemos, por exemplo, quantos bois são suficientes para alimentar uma família por um ano. Dois bois? Um boi? Meio Boi? Isso porque não temos mais a relação com o animal, não temos mais relação com a vida que é necessário sacrificar a fim de garantir nosso estilo de alimentação… temos apenas acesso aos pedaços de carne, a frações, desvinculados do animal, da vida, fragmentos embalados a vácuo.
E exatamente porque a experiência está fragmentada, somos incapazes de pensar nossa alimentação como parte de um todo que implica a relação com outra vida, com a morte e com o sacrifício de outra existência… e certamente estamos muito distantes de pensarmos se queremos que nossa alimentação se dê à custa de outra vida e, se sim, em que termos.
“A Origem da Opressão” sugere que essa mesma operação de desfragmentação que fazemos com a carne bovina, fazemos com outros seres, com outras carnes e com o próprio ambiente. Um hectare de soja ou eucalipto é tomado apenas numa estreitíssima dimensão comercial, sem levar em consideração o seu impacto ambiental; do mesmo modo a mulher é separada de sua humanidade, sendo muitas vezes tomadas apenas como objeto, como mercadoria, e assim o negro, o trabalhador, etc. E assim, uma interpretação de mundo é imposta, um mapa, sobre a territorialidade da vida.
Regina
mostra nesse texto que inaugura a coleção Biosférica que a imposição do mapa nos obriga a pensar de acordo com
as determinações cartográficas… qual o preço do kilo da
alcatra, da maminha, do coxão mole…. Sem pensarmos o território,
na nossa relação com o animal, com a forma de abate, com a
quantidade de recursos naturais necessários para se manter um
rebanho, sem pensarmos nos impactos de nossos hábitos alimentares e
como isso gera, ao fim e ao cabo, uma vida vazia, uma vida sem afetos
e sem vínculos profundos, limitados à bidimensionalidade, à rasura
do mapa. E como essa vida vazia pode produzir monstruosidades, justamente porque não pensamos no outro.
A coleção Biosférica da Confraria do Vento, em certo sentido, assim como a coleção Clío da editora Axóuxere, traz para o leitor textos radicais, entendido aqui o radicalismo nos termos utilizados nas campanhas eleitorais recentes… radicais na medida em que sugerem que olhemos para além de nós mesmos, radicais na medida em que sugerem que pensemos a realidade e a sociedade levando em consideração o outro, o outro gênero, a outra cor, a outra condição financeira, a outra espécie, as outras gerações, que nos antecederam e as que nos irão suceder.
A coleção Biosférica, bem como o texto “As Origens da Opressão” que a inaugura, é radical na medida em que nos convida a pensar o território para além das determinações do mapa que nos foi imposto.
E ao mesmo tempo em que são radicais, a coleção Biosférica e a obra de Regina Schöpke, parecem buscar um reestabelecimento dos laços entre a individualidade e a coletividade e a natureza.
“Reconciliar-se com a vida, em última instância, significa reconciliar-se com a natureza, significa reconciliar-se consigo mesmo. (…)”
Em certo sentido, trata-se de uma proposta de religação entre os seres humanos com suas diferenças e com o meio que os cerca, com suas raízes. A coleção Biosférica, portanto, além de radical, carrega consigo um sentido religioso, de religação.
É uma coleção e uma obra que nos convida a pensar sobre nossa condição e, uma vez que tivermos refletido sobre ela, nos convida a nos responsabilizarmos pela forma como iremos estabelecer os vínculos com o mundo à nossa volta. É uma coleção que convida ao amadurecimento do indivíduo:
“(…) lutar pela reconciliação do homem consigo mesmo significa dar fim tanto aos tiranos quanto aos pretensos salvadores da humanidade. Significa tirar o homem de sua duradoura infância afetiva”.