24 de fevereiro de 2012

O Evangelho Segundo São Braz

   Uma das poucas passagens bíblicas que conheço de cor afirma o seguinte: "Não há fora do homem que entrando nele possa manchá-lo. O que mancha o homem é o que sai do homem". A proposição encontra-se no evangelho de Mateus, eu acho; não me recordo nem o capítulo, nem o versículo... nem o apóstolo.
   Outro dia, a grande máquina burocrática contratou uma leva de estagiários. Estagiários são peças de vida útil curta na engrenagem, mas de fácil reposição e custo reduzido. Estão por todas as partes e em todos os níveis da administração pública, tendo que ser repostos a todo momento.
   Um deles calhou de cair no Setor de Protocolo, que fica ao lado da minha sala. Chama-se Matheus, como o apóstolo, só que com "h" depois do "t". Matheus, logo que ingressou na repartição, tinha o hábito de se sabotar em todos os aspectos de sua vida e o costume de colocar a culpa em qualquer coisa que lhe aparecesse pela frente. Isso atrasava sua vida, atrasava o trabalho e atrasava a vagarosa procissão da burocracia. 
   O estagiário era um terrorista de si mesmo. E era muito bom nisso.
   Matheus, evidentemente, discordava de seu xará bíblico.
   Ocorre que o setor de protocolo era, e ainda é, chefiado pelo Braz, um mulato de cabelos grisalhos, ex-pugilista, ex-soldado da aeronáutica, com a estrutura corporal de um armário e evangélico convicto.
   O Braz não disse ao Matheus que aquela persistente auto-sabotagem era errada, mas mostrou como a auto-confiança era benéfica. Mostrou e deixou que o estagiário escolhesse entre culpar o mundo de fora ou cultivar o mundo de dentro. Demorou um pouco, mas o Braz dobrou aquela peça descartável. Não conheço outro servidor na repartição que teria se dado ao trabalho de polir uma engrenagem transitória.
   Matheus, de vez em quando, ainda se sabota; agora mais por hábito que por convicção.
   Não tenho dúvidas de que o Braz ajudou muito esse estagiário; o que eu ainda não sei é o quanto Matheus ajudou o Braz, ao se deixar ser ajudado.