15 de maio de 2014

Interpretação de um Sonho

   Na repartição onde trabalho uma de minhas atribuições é secretariar as audiências cíveis. Eu fico num canto da sala, atrás do monitor, digitando o que as pessoas falam.
   Uma audiência, via de regra, acontece quando o processo alcança um estágio em que, para se decidir quem tem ou não um direito, é preciso a prova testemunhal.
   Ocorre quando o deslinde da contenda depende do testemunho das pessoas que presenciaram o fato, para se saber como este se deu.
   Supõe-se que algum fragmento da verdade talvez esteja incrustado na fala dos homens.
   Por exemplo, num processo de pensão por morte, em que os pais pleiteiam o benefício previdenciário e a administração pública o nega sob a alegação de que eles não eram dependentes econômicos do filho morto, por lei, é preciso saber se eles eram ou não dependentes econômicos daquele filho.
   Mas como se prova a dependência econômica se os documentos no processo são insuficientes?
   Testemunhas! Vizinhos, conhecidos, desconhecidos... todos vão parar na sala de audiências. Quem pagava as contas? Quem fazia as compras no supermercado? 
   Conforme o que testemunharem, a prova pende para um lado ou para outro. É a busca burocrática pela verdade.
   Assim funcionam as audiências... todas a quartas-feiras.

   Agora, eu não costumo sonhar com meu trabalho... e isso me dá uma certa satisfação. Considero quase uma conquista pessoal. Entretanto, outro dia, sonhei com uma estranha audiência que sequer posso dizer se era ou não de natureza cível.

   A representação onírica inicia-se como um dia de audiências qualquer. Preparo a sala para receber as partes envolvidas, separo o processo - trata-se de uma disputa judicial de usucapião - e espero o horário para abrir a porta.
  O primeiro a chegar à repartição é o autor da ação, o Sr. Juan José Arreola, escritor mexicano de cabelos rebeldes, falecido em 2001, acompanhado de seu advogado, um homem calvo e de semblante cerrado.
   Sentam-se à mesa e aguardam a chegada do réu.
   Este chega pouco depois, o Sr. Jorge Luís Borges, escritor argentino, cego, com sua bengala - falecido em 1986. No sonho, advogava em causa própria.
   Tomou seu lugar na sala de audiências e aguardou, fitando o vazio à sua frente.
   Assim, sentados, esperamos todos a chegada do magistrado.

   O juiz entra e vai logo chamando a primeira testemunha. Abro a porta da sala de audiências e chamo ao recinto a testemunha arrolada pelo autor: um rinoceronte.
  O animal se esgueira entre as cadeiras e, arranjando as várias peças moduladas de seu enorme corpo, senta-se diante do magistrado.
   O ponto controverso é a ocorrência (ou não) do uso contínuo e inconteste do fantástico por parte do sr. Juan José Arreola, para que se determine se o mexicano tem ou não a posse desse estranho bem jurídico.
   Jorge Luis Borges parece alheio à presença animalesca no ambiente burocrático.

   O juiz pergunta a natureza da relação da besta com o Sr. Arreola. O animal afirma não ter nenhuma relação especial com o autor, apesar de conhecê-lo "de vista".

   O juiz, sagaz, retruca: "Sabe-se que os rinocerontes têm visão bastante limitada, como pode ter certeza que conhece, "de vista", o Sr. Arreola?".

   - "Temos um amigo em comum, o Sr. Joshua McBride, um rinoceronte que também é juiz. Talvez Vossa Excelência o conheça".

   O magistrado se dá por satisfeito.

   O advogado de Juan José, o senhor careca de semblante cerrado, pergunta: "Gostaria de saber da testemunha o que ela é".

- “O que és?” - Inquire o Juiz.

- "Sou um rinoceronte" - responde a besta.

- "Quem o indicou como testemunha no processo de usucapião?" - seguiu perguntando o advogado.

- "Pode responder à pergunta" - concedeu o magistrado.

- "Creio que foi o Sr. Juan José Arreola".

- "Sem mais perguntas" - encerrou o careca.

- "O Sr. Borges tem alguma pergunta?"

Antes que o argentino pudesse responder, despertei.

   Agora, quero propor aqui uma interpretação para este sonho.

   Há algumas semanas, fui apresentado à literatura fantástica de Juan José Arreola pelo escritor e jornalista Sérgio Tavares.
   Não o conheço pessoalmente, exceto por uma foto que estampa a coluna que escreve no "Diário do Paraná".
   Como podem imaginar, nesta fotografia, ele está careca e possui semblante fechado, como o advogado do escritor mexicano.
   Por ter me apresentado aos textos, aparece no sonho como defensor de Arreola.

   Outro elemento importante do sonho é a classe do processo com o qual ingressa o escritor mexicano. A ação de usucapião é geralmente proposta quando alguém ocupa um imóvel por muito tempo, configurando a posse, sem que o legítimo proprietário saiba.
   Ao ler a obra de Arreola, tive a impressão de que eu ficara tempo demais sem tê-lo conhecido. Cheguei a ser tomado por um sentimento de culpa por ter ignorado o autor. Assim, é justificável que, no sonho, respaldado por seu advogado, o Sr. Sérgio Tavares, ele venha cobrar seu lugar em minha biblioteca, propondo a ação de usucapião.

   Borges, por sua vez, não necessita de representante. Fala por si.
   É importante ressaltar que, na Justiça Federal, órgão onde trabalho, em geral, as ações não são proposta contra indivíduos, mas contra instituições, contra o próprio Estado.
   Parece evidente que, no sonho, Borges ocupa o lugar de uma instituição – tamanha a força de seus escritos.
   Meu inconsciente colocou o autor argentino como o próprio Estado. Por outro lado, colocou-o no banco dos réus. É Borges quem responde à ação proposta por Arreola.
   Há aí, estampado, meu complexo de Édipo. O desejo reprimido de condenar o Pai (Borges) para realizar meu desejo de possuir a mãe (a literatura fantástica). Como carrego comigo o sentimento antagônico de admiração pelo Pai (Borges), utilizo-me de Arreola para condená-lo.

   Por fim, é necessário interpretar a presença do paquiderme na repartição pública. “O Rinoceronte” (existem dois contos do autor com o mesmo título) foram os textos de Arreola que mais me impressionaram.    Assim, em meu sonho, o animal testemunha em favor do mexicano. A mera presença de um rinoceronte na sala de audiências comprova a natureza fantástica da literatura de Juan José Arreola.

   Embora o sonho tenha acabado prematuramente, bem como a ação de usucapião, suponho que sejam devidos os honorários advocatícios ao patrocinador da causa, o Sr. Sérgio Tavares, a quem agradeço por apresentar-me à esses textos impressionantes.

   Texto de Sérgio Tavares sobre Juan José Arreola: http://confrariadovento.blogspot.com.br/2014/03/enquanto-alguem-voraz-me-observa.html