4 de junho de 2014

Poesia Concreta

   Dias atrás tive um sonho.
   Sonhei com uma folha de papel onde estavam datilografadas frases soltas, perdidas pela superfície branca.
   Os caracteres eram irreconhecíveis. As frases não tinham sentido e suas disposições na página lembravam um poema concreto.
   Ao final, no rodapé da página, centralizado, estava um nome: "Ibramohim".

   No sonho, busco lembrar-me de onde conheço aquele nome. Penso, penso e esse incômodo pensamento me desperta.
   Acordado, na cama, sigo tentando me recordar de algo que remetesse ao nome. Em vão.

   O mais próximo que cheguei foi "Ibrahimovic", o jogador de futebol do Paris Saint-Germain. Talvez em razão da proximidade da Copa?
   Mas qual o sentido?

   Considerei também o nome "Inhotim", museu que eu visitara há algum tempo, onde estão expostas obras de artistas brasileiros e que me causou forte impressão.
   Mas também achei muito diferente do nome do sonho.

   Ontem, no cartório judicial onde trabalho, organizando os autos para as audiências da semana, deparei-me com um processo de naturalização de um senhor jordaniano.
   Ao final da página, centralizado, estava o nome do requerente. Seu primeiro nome era "Ibrahim". 
   Fiquei espantado com a coincidência, mas depois, ponderando um pouco, concluí que eu certamente já havia folheado aqueles autos e, por isso, o nome ficou em minha cabeça. Por isso apareceu no sonho.

   Agora, por que eu mudara o meio do nome "Ibra-mo-him"?

   A recordação do nome do museu, agora, parecia aproximar-se dos esforços oníricos. "Mo-him" e "nho-tim", pareceram-me próximos o suficiente.

   Mas qual a relação entre o jordaniano, o museu e o jogador de futebol?

   Quanto ao Jordaniano posso afirmar o seguinte: Gosto bastante de fazer as audiências de naturalização. Espanto-me todas as vezes que testemunho um estrangeiro tornar-se brasileiro.
   Nesse processo ele renuncia a sua naturalidade, entregando ao poder público sua carteira de identificação de estrangeiro; a qual eu recolho para encaminhá-la ao Ministério da Justiça.
   Ocorre que eu tenho um pai estrangeiro, que possui uma carteira daquelas. Todas as diferenças que sempre identifiquei em meu pai, o idioma, as crenças, o pensamento, enfim, a minha dificuldade em compreendê-lo, condensava-se naquele documento diferenciado, naquele pedaço de plástico, que não era verde como o documento dos demais brasileiros, como o meu.

   Suponho que exista, atrás do nome "Ibramohim", um desejo de tornar meu pai brasileiro, tal como o jordaniano, em aproximá-lo de mim... de aproximar-me dele.

   Aí entra o museu. No sonho, misturei o nome de Ibrahim com o nome Inhotim.
   A viagem que fiz ao museu, a fiz acompanhado de meu pai. Há muitos anos não viajávamos juntos. E o museu é tipicamente brasileiro, com plantas brasileiras e obras de artistas nacionais.
   Inserir o museu dentro do nome do jordaniano, foi como infligir uma proximidade com meu próprio pai, meu estrangeiro de longa data.
   Essa interpretação, acredito, corrobora o desejo de aproximação. 

   Passemos a "Ibrahimovic", o jogador de futebol. Nada mais nacional que o futebol. Ainda mais em ano de Copa. Para contrastar com o estrangeiro. O nome do sonho "Ibramohim", portanto, condensa um desejo de aproximar um estrangeiro, meu pai, de meu país, das coisas que me são familiares. Aproximá-lo de mim.

   Fica faltando entender a razão dos caracteres indecifráveis e porque a apresentação desses ideogramas assemelhavam-se a um poema concretista.

   Suspeito que os caracteres estrangeiros remetem à distância cultural entre mim e meu pai. Afinal, ele pensa em outro idioma e, por vezes, também escreve e fala numa língua que me é estranha.
   Por sua vez, a estrutura de poema concreto, para mim, está diretamente vinculada ao poeta Haroldo de Campos que, junto com seu irmão Augusto de Campos, inaugurou o movimento concretista no Brasil.
   Qual a relação?
   O que reputo significativo é que este poeta concretista traduziu para o português inúmeros poemas dos mais diversos idiomas estrangeiros: grego, japonês, russo...
   Assim, embora compostas de caracteres indecifráveis, a disposição das frases no sonho remetem a um desejo de tradução dos caracteres, de versão do desconhecido para o familiar e, portanto, de apropriação do estrangeiro, de meu próprio pai.

   Suspeito que o sonho indique um desejo de naturalizar o estrangeiro que tenho dentro de mim.... de verter para um idioma familiar o pai desconhecido que carrego comigo... eis uma audiência de naturalização que eu gostaria de fazer.