3 de julho de 2014

Mimesis

   Uma das discussões pela qual sempre nutri simpatia é a controvérsia sobre o conceito de mímesis.
   É um conceito que, tal qual uma moeda, possui duas faces.
   Alguns interpretam o vocábulo grego como "representação" de algo e, nesse caso, trataria-se de um afastamento do objeto, um distanciamento da verdade.
   Por este entendimento, a mímesis efetuada pela arte, pela pintura, pela poesia, seria um fraca imitação do real. Ao pintar um quadro, o artista estaria apenas imitando algo que existe na realidade.
   É uma concepção bastante racional do conceito.
   Voltando à metáfora da moeda, considerando que, nesse sentido, a mímesis simboliza algo, suponho que esta interpretação seja o lado da coroa, o símbolo do poder monárquico.

   Há outra vertente que, por sua vez, confere ao conceito um conteúdo mais místico, como se mímesis fosse a própria atualização da verdade.
   Nesse caso, o artista, em seu fazer mimético, tornaria real aquilo que ele deseja mostrar. Ao narrar uma história, o poeta estaria nos fazendo reviver o fato, transportando-nos para aquele momento preciso.
   Este entendimento não trata de símbolos, mas da essência daquilo que é "representado". Assim, poderíamos dizer que esse é o lado da cara na moeda, o homem, sem símbolos.

   Gosto de toda essa discussão sobre o conceito porque ela não é uma moeda parada sobre a mesa, com uma única face à mostra, mas é a moeda lançada à sorte, em seu giro sobre si mesma, no vazio. Ora mostrando a efígie do monarca, ora sua coroa.

   As audiências no Poder Judiciário têm características rudimentares de uma arte. São evocações de um fato passado.
   As testemunhas, chamadas ao palco do processo judicial, são os poetas que cantam os acontecimentos. Nestes versos testemunhais, nessa mímesis jurídica, apresentam-nos o ocorrido.

   Agora, qual a natureza dessa mímesis que toma forma na sala de audiências? Qual a natureza do testemunho?
   Pergunto-me, todas as quartas-feiras, se aquelas pessoas, ao deporem, constroem apenas mais uma representação dos fatos, dentre tantas outras documentais juntadas ao processo, ou se há ali uma mímesis mística capaz de mostrar o ocorrido em toda a sua verdade, de torná-lo presente na sala de audiências.

   Confesso-lhes que, hoje em dia, prevalece nos processos judiciais a interpretação de que se trata de mais uma representação, de uma imitação daquilo que eventualmente possa ter ocorrido. Via de regra, opta-se pela verdade possível no processo (um sopesar de imitações), em detrimento da verdade real. 

   Via de regra, a moeda cai com a coroa virada para cima.

   É assim que a banda toca.

   Entretanto, uma única vez, presenciei uma juíza interpretar a mímesis em seu segundo sentido.

   Era um caso de pedido de restabelecimento de pensão. A autora alegava que havia sido forçada pelo ex-marido, através de repetidas agressões psicológicas, a desistir do seu direito e a afastar-se da própria filha.
   Com a morte do mesmo, vinha à justiça reclamar o benefício do qual fora forçada a abrir mão.

   Durante a audiência, a juíza solicitou à autora que se recordasse dos acontecimentos que a levaram a pedir a desistência da pensão.
   Ouvimos a história, os sucessivos eventos de assédio. A narrativa era entrecortada por prantos e tremores físicos da depoente, como se o marido não tivesse morrido. As experiências não eram apenas recontadas, com o afastamento de uma representação ou de uma imitação, elas eram revividas.
   A violência e seu impacto sobre o narrador estavam acontecendo, mais uma vez, no palco do judiciário. O passado tornava-se agressivamente presente.

   Calcada na percepção de que naquele depoimento se revivera o fato e de que ali haviam indícios da verdade real, a decisão judicial concedeu à autora seu direito previdenciário.

   Esta foi uma das raras vezes em que vi a moeda da mímesis cair com a cara voltada para cima sobre o prato da balança da justiça.