Escrever sobre um conceito, um conceito filosófico qualquer, implica quase sempre num acerto de contas com a história do pensamento. E nunca é um acerto de contas do tipo troco da feira: “Eu te dei dez, o cacho de banana é sete, tu me volta três”. Não. É algo mais próximo do esforço minucioso de fechar o balanço comercial de uma empresa. Há dívidas de longo prazo, de médio prazo e de curto prazo, algumas delas já se incorporaram ao ativo da empresa, parcial ou integralmente, e já geram dividendos, alguns de longo prazo, outros de médio prazo e outros de curto prazo… e essa conta toda precisa fechar.
Não à toa, os contadores estão entre os profissionais com mais chances de padecer de estresse e depressão. Do mesmo modo, suspeito que escrever sobre conceitos filosóficos expõe ao risco da angústia o escritor, que está sempre fadado a não conseguir fechar o balanço e discriminar quais ideias já se incorporaram ao ativo circulante ou permanente da cultura, quais geraram dívidas a longo prazo, etc.
Então a leitura de textos filosóficos, ou ao menos a sua interpretação, tende a ser uma experiência extenuante de conferências e checagens dos ativos e passivos conceituais, uma espécie de auditoria do pensar. Esse Tribunal de Contas da reflexão, essa fiscalização da Receita Especulativa gera textos cada vez mais indexados, mais amarrados, indicando com precisão de onde surgiu cada despesa e cada receita, comprovando cada movimentação com a devida nota fiscal.
São textos preocupados com os centavos “pennywise”.
Busque um tema filosófico qualquer no Google Acadêmico, clique em algumas dissertações, teses ou artigos de revistas científicas e verão do que estou falando. Leiam algumas discussões e tentem sentir, tentem colocar-se no lugar dos autores e percebam como esses escritores, acadêmicos ou não, que têm que lidar com o pensar encontram-se sobrecarregados pelo peso monumental da burocracia dos conceitos. É quase possível vê-los angustiados como um dos personagens do Processo de Kafka, mas de um processo especulativo, acadêmico, histórico.
Essa é a regra, mas há exceções.
De vez em quando, nessa vida, encontramos textos de pensadores que nos conduzem pelos conceitos como num passeio pelo mundo dos conceitos e não como se o pensar fosse um balanço comercial de empresa. São raros, mas acreditem, existem.
As ideias, nesses textos, não são apresentadas como relatórios contábeis autorremissivos. Não estamos vendo ali o valor do maquinário imobilizado e sua depreciação. Não estamos diante do financiamento de um galpão ou diante da evolução da dívida com juros a 7.0325% ao ano. Não. Esses autores - abençoados - nos apresentam os conceitos e ideias de outras maneiras: eles nos levam ao pátio da fábrica e nos mostram a máquina adquirida. Nos levam ao galpão de 4 mil metros quadrados e nos mostram como os trabalhadores operarão naquele espaço, explicam como funciona o sistema de ventilação e iluminação. A matéria-prima não é um número vinculado a um empréstimo a ser quitado em tantos meses, mas são toneladas de aço ou madeira que nos impressionam pelas dimensões, pelo volume, organizados num canto do galpão, com etiquetas...
Não sei se esse modo de escrever filosofia é menos verdadeiro ou menos exato que o modo contábil. Mas é uma maneira que ultrapassa o cerimonial burocrático tão comum nos bancos de teses e artigos científicos.
Pois nessa pandemia recebi um livro chamado “Alegria, a Verdadeira Resistência”, escrito por Regina Schöpke, professora adjunta do curso de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. E contra todas as minhas expectativas, deparei-me com um livro não burocrático.
O livro de Regina é um passeio pelo conceito de “alegria” e pelos conceitos vizinhos, como a angústia, a tristeza, o medo, a felicidade… Esses conceitos, nessa obra publicada pela editora Confraria do Vento, não estão quantificados e organizados numa tabela, nem amarrados a cada movimento histórico ou escola filosófica que os tenha apreciado ou alterado.
Regina opta por uma outra abordagem dos conceitos, sem abandonar o pensamento filosófico.
Imaginem uma tabela do Excel com um rol de frutas, em que se quantifica o nível de açúcar, o nível de acidez, a porcentagem de água… Embora essa tabela hipotética seja, toda ela, voltada para a rigorosa descrição organizada e criteriosa das características das frutas, o fato é que ao analisarmos as linhas, as colunas e as células em todas as suas minúcias, nada sabemos sobre a maçã, ou sobre a graviola, ou sobre a mexerica…
De tanto nos ferrarmos nas abstrações numéricas, nos décimos, centésimos, algo maior e mais concreto se perde.
Há um ditado Inglês para essa miopia: “Pennywise, Pound fool”… alguém que conta demais os centavos, perde-se no real valor do dinheiro, das trocas, do mercado.
O livro de Regina não trata desses dados abstratos tabelados, estabelecidos segundo comparações decimais de concentração de frutose… Não. O livro “Alegria” é um convite ao leitor para que morda cada uma das frutas da tabela, e sinta o sabor, a textura, a suculência, o azedo, o amargo e o doce.
O que o livro de Regina nos ensina é que há uma diferença fundamental entre saber a concentração de água numa melancia ou numa manga, numa tabela comparativa com precisão de três casas decimais, e sentir o sumo amarelo ou vermelho escorrer-lhe pelos lábios, quando sentado debaixo da árvore no mormaço do verão:
“A filosofia deve, mais do que teorizar e refletir, deve produzir uma práxis, deve produzir a própria vida. Sem uma perspectiva prática, a filosofia ou o próprio pensamento tornam-se vazios, razão pura”.
Regina nos conduz pelos conceitos de alegria, tristeza, medo, felicidade, angustia, evocando maneiras possíveis de pensá-los, convidando o leitor a percebê-los segundo outras perspectivas, outras posturas, sugeridas por grandes pensadores da história do pensamento ocidental.
Virgínia Woolf ao descrever a monstruosa obra de Edward Gibbons, “Declínio e Queda do Império Romano”, constrói a belíssima imagem de que a leitura de tal estudo, que cobre séculos de História, por vezes, assemelha-se à experiência de estar montado sobre um cavalo selvagem, sendo que a cada salto impetuoso do animal, vemos décadas passarem num átimo. Mas esse é o preço de se estar montado num texto mais arriscado e selvagem e não num potro domesticado.
O livro de Regina também nos mostra, dessa maneira vertiginosa descrita por Woolf, os conceitos e discussões filosóficas que contornam a ideias trazidas no "Alegria a Verdadeira Resistência". A cada salto conceitual ou histórico proposto pela professora Schöpke, vemos passar sob nossos pés alguns dos maiores personagens da mitologia grega, a relação de Nietzsche com Espinosa, as torções possíveis da filosofia de Heidegger, os lampejos da psicanálise...
Alguns adeptos da escrita burocrática talvez acusem o texto do livro “Alegria, a verdadeira Resistência” de ser desordenado, sem regras. Talvez digam que o pensamento de Regina não obedece os rigores necessários.
Nada mais falso. O livro “Alegria, a verdadeira Resistência” é, na verdade, uma festa, e como toda festa ela tem sua ordem, tem suas regras, bastante claras, mas a ordem e as regras estão a serviço da alegria dos convidados, do pensamento, e não o contrário. O livro, como numa festa, está preocupado com os sons, com as ressonâncias, com os sabores, com os flertes, com as paixões, com os desentendimentos, com as inclinações dos conceitos quando colocados para dançar diante de outra reflexão, outro raciocínio, outro corpo. O livro está interessado na vida das ideias, no seu gingado e não em sua autópsia.
O livro de Regina Schöpke é, antes de tudo, um livro alegre. É uma festa que vale a pena. Fica o convite.