Quando se convencionou, pela primeira vez, o padrão métrico decimal de medida, depositou-se nos Archives de la Republique, na capital francesa, uma barra de platina que deveria ser a referência da medida.
Era o metro de Paris.
Há alguns anos, numa juventude não muito distante, eu acreditava ser uma pessoa perfeitamente normal. Imaginava mesmo ser um certo tipo de padrão de normalidade. Um metro de Paris comportamental.
Como ocorre na juventude, fiz escolhas que me levaram a situações que colocaram essa normalidade em questão. Deixei de ser a medida das coisas, deixei, inclusive de ser minha própria medida.
Uma tarde, lamuriando com um grande amigo sobre as turbulências juvenis, reclamei: "Justo eu, que achava ser tão normal... justo eu, que acreditava ser uma espécie de metro de paris da normalidade".
Ao que meu nobre interlocutor respondeu... "Acontece que, mesmo o metro de Paris, só mede precisamente um metro em condições ideais de pressão e temperatura... lá na sala dos arquivos da república francesa. Bota ele no fogo para ver o que acontece".
Naquele momento, percebi que a ficção de normalidade na qual acreditara durante anos, só se sustentaria caso me mantivesse afastado das variações de pressão e temperatura a que nos submete a vida e, em particular, a juventude.
Dei-me conta de que, para ser quem eu acreditava ser - um normal - precisaria abrir mão da juventude e das vicissitudes da vida... não valia a pena manter a normalidade, não valia a pena sustentar a ficção.
Hoje, em minha rotina de trabalho como burocrata, percebo que o judiciário é um grande esforço em se manter uma certa normalidade. Uma normalidade que não apenas é criada diariamente pela rotina, mas é uma normalidade que é diariamente desejada, e que alimenta uma crença de que existe o normal.
O Judiciário, como o metro de paris, só funciona em condições ideais de pressão e temperatura. Ocorre que ele está no mundo e, estranhamente, opta por negar a realidade e alimentar a ficção de que ele é o padrão do normal.
O Judiciário é esse esforço pré-juvenil, diário, de sustentação de uma normalidade que não existe no mundo. É a construção cotidiana da mentira que consiste em afirmar que suas regras são o padrão do que é normal. É a manutenção de uma ficção.
Todos os dias, quando bato meu ponto e adentro a repartição pública, sinto que retorno - de uma maneira pervertida - àquele momento de minha vida em que acreditava ser o metro de Paris. É um retorno diário, de sustentação de uma ficção.