Existe, no processamento de uma contenda judicial, o chamado "tempo morto" do processo.
Dá-se este nome fúnebre aos incontáveis procedimentos burocráticos que não têm relação nenhuma com a resolução jurídica da disputa.
Por exemplo, o tempo que o processo fica na mesa do funcionário público sendo numerado, autuado, aguardando a juntada de algum documento ou a confecção de algum ofício; o tempo que os autos ficam no setor de cópias; o tempo que fica esperando a assinatura de alguém.
Todos esses períodos de inércia burocrática são denominados "tempo morto" do processo.
Agora, alguns servidores têm como atribuições específicas lidar com os cadáveres da atividade jurisdicional.
Eu sou um desses que manejam os espíritos que perambulam pelo cartório. Um Caronte, um barqueiro da morte, que atravessa os mortos de um lado para o outro; mortos que se enfileiram, de maneira quilométrica nas margens do rio Aqueronte, aguardando a sua vez.
Suspeito que, desde criança, tenha sido treinado para esse ofício.
Na cidade onde nasci, todo ano, há uma festa em celebração aos mortos. O Bon Odori.
A cerimônia consiste numa dança coreografada, sem fim, dentro de uma arena circular. Desde minha infância até hoje as músicas são as mesmas e repetem-se incessantemente numa ordem invariável. Os movimentos do bailar também não se alteram.
Assim, no Bon Odori, durante toda a noite, representa-se, ao som de tambores, a eternidade, cíclica e constante.
Os mortos são repetitivos, raramente diminuem de número (a redução ocorre apenas nos casos excepcionais de reencarnação), amontoam-se nas margens do Rio Aqueronte e trazem consigo a carga tediosa do infinito.
Esta experiência infantil adestrou-me para lidar com o "tempo morto" dos processos, com os procedimentos ritualísticos, quase invariáveis, circulares, cíclicos, que se amontoam na secretaria aguardando sua vez de serem transportados para a próxima fase processual.
Assim, creio, preparei-me para exercer o ofício de um Caronte burocrático. Em vez de um barco, tenho um carimbo.