Um burocrata vive num mundo cuidadosamente estruturado fora da realidade. Há uma sutileza nessa construção. Em nossos cotidianos cartorários, parece que falamos e vivemos no real, que conhecemos do que falamos, quando, em verdade, apenas aquaplanamos sobre o mundo, sem nunca tocá-lo.
Os textos dos processos, praticamente de qualquer processo, são estranhas ficções. Leia um auto qualquer para saber do que estou falando. Hoje em dia, com os processos digitalizados, basta entrar no sítio de qualquer tribunal do país para se ter acesso à uma contenda judicial. Afinal, os processos são públicos. Vocês logo notarão que quase todos têm a natureza de um delírio, de um sintoma. Isso porque a estrutura processual, esse estranho sistema que opera suspenso do mundo, afasta toda a máquina pública e com ela os servidores públicos da realidade.
Eu, para me manter são nesse cotidiano psicótico da burocracia judicial, tento ler outros textos que tenham algum contato com as coisas do mundo.
Ultimamente, estava lendo "Bahia de todos os Santos", escrito em 1945 por Jorge Amado. Gosto muito da prosa do escritor baiano. Estava na página 148 do livro quando saiu na imprensa que um magistrado da Justiça Federal do Rio de Janeiro havia decidido que as crenças afro-brasileiras não se constituiriam em religiões.
Sou servidor da Justiça Federal de outro Estado da Federação e por isso suspeitei da afirmação. Já vi decisões judiciais serem distorcidas pela imprensa.
A contragosto, parei de ler Jorge Amado para procurar na internet a íntegra da famigerada decisão proferida pelo Juiz Eugênio Rosa de Araújo. Segue o trecho com a tal afirmação alegadamente preconceituosa e a respectiva fundamentação, curtinho:
"No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado".
A imprensa, dessa vez, não havia distorcido nada. A decisão era aquela mesma.
Voltei ao "Bahia de todos os Santos", pensando na afirmação burocrática de que o candomblé e a umbanda não teriam texto base, hierarquia e um Deus a ser venerado. Folheei o livro, ainda um pouco desapontado, e caí na descrição do dia do falecimento de Mãe Senhora, a maior ialorixá da Bahia, cuja transcrição reputo pertinente:
"Os altares estão povoados de orixás e as águas das fontes e dos rios de Oxum rolam pela praça, descem as ladeiras, precipitam-se no Pelourinho.
- Quem irá para o seu lugar? Quem?
- Quem vai dizer é Xangô, quando o jogo for feito...
Mãe Senhora morreu de manhãzinha, na véspera cumprira suas obrigações de santo até tarde, noite adentro. A morte a alcançou na hora do primeiro sol e seu corpo ocupou, imenso, a casa de Oxalá. A notícia desceu para a cidade: obás, ogãs, ebomins e iaôs, filhos e filhas-de-santo dirigiram-se para os caminhos de São Gonçalo, onde se ergue o terreiro. A cidade foi tomada de surpresa e comoção, um impacte violento. Na vida dessa cidade da Bahia, que não se parece com nenhuma outra, a ialorixá Senhora era uma figura das mais importantes, guardiã das tradições e de rituais que resistiram a todas as perseguições, que superaram a desgraça da escravidão, que trouxeram os bens da dança e do canto até os dias de hoje. No complexo cultural baiano (e brasileiro, pois a Bahia é a matriz inicial e fundamental) o povo tem o primeiro lugar, o papel definitivo.
Quem presidiu as obrigações do axexê, das cerimônias fúnebres, foi outra famosa mãe-de-santo: a ialorixá Menininha do Gantois, irmã-de-santo da falecida e sua grande amiga. Veio do seu terreiro do Gantois, de onde quase nunca sai, para as pesadas tarefas de tirar o oxu da cabeça da morta, novamente usar a navalha e libertar o santo, deixando apenas o egun. Nenhuma outra mãe-de-santo poderia fazê-lo, devido à qualidade da falecida e à sua importância. Numa subtil hierarquia que não é imposta por nenhum decreto, Senhora estava praticamente acima das demais, só Menininha era sua igual no conhecimento e na experiência".
Nestes dois parágrafos, descrevendo um funeral, Jorge Amado expõe o "texto base" da religião afro: a tradição oral que resistiu às perseguições e à desgraça da escravidão; mostra o respeito às entidades e o papel fundamental que elas ocupam na vida dos indivíduos que professam tal fé, além de apontar a rigorosa observância da hierarquia.
Jorge Amado traz, nessas poucas linhas, a constrangedora realidade que a burocracia ignora - ignora tanto que, aos poucos, parece-me, perde a sua legitimação ante a sociedade, agarrando-se com todas as forças na legitimidade formal.
Amanhã, segunda-feira, retorno ao trabalho, retorno ao cartório, à burocracia, com Jorge Amado no coração.