Um cartório judicial, apesar da opacidade burocrática, funciona muito como um espelho.
A questão é que é um espelho que reflete algo desconfortante. Mostra ao burocrata aquilo que ele se tornou.
Mostra ao burocrata o burocrata que é e, ao fazê-lo, causa um espanto curiosamente inesperado.
Na secretaria vejo estagiários com seus vinte e poucos anos, vejo servidores mais novos que eu e outros que estão prestes a se aposentar.
Vejo meu passado e vislumbro um possível futuro.
Entre esse tempo ausente do que passou e do que está por vir, surge na superfície da burocracia o meu presente. O burocrata que me tornei.
Nunca pensei em ser o que sou hoje e, no entanto, demorei para tornar-me o que sou. Daí o espanto curiosamente inesperado.
Por que pensei nisso?
Hoje, rumo ao trabalho, ouvi no carro uma canção de John Denver que dizia o seguinte:
"... Now the face that I see in my mirror
More and more is a stranger to me
More and more I can see there's a danger
In becoming what I never thought I'd be"
Algo como:
"... Agora o rosto que eu vejo em meu espelho
Mais e mais é um estranho para mim
Mais e mais eu posso ver: há um perigo
De tornar-me o que nunca pensei que seria"
Sentado em minha estação de trabalho, olhando para servidores, advogados, processos, ofícios e carimbos, olhando para todos sinceramente, contemplei atento o burocrata que me torno a cada dia e o perigo que se avoluma nesse estranho reflexo.