Dias atrás tive um sonho.
Sonhei com uma folha de papel onde estavam datilografadas frases soltas, perdidas pela superfície branca.
Os caracteres eram irreconhecíveis. As frases não tinham sentido e suas disposições na página lembravam um poema concreto.
Ao final, no rodapé da página, centralizado, estava um nome: "Ibramohim".
No sonho, busco lembrar-me de onde conheço aquele nome. Penso, penso e esse incômodo pensamento me desperta.
Acordado, na cama, sigo tentando me recordar de algo que remetesse ao nome. Em vão.
O mais próximo que cheguei foi "Ibrahimovic", o jogador de futebol do Paris Saint-Germain. Talvez em razão da proximidade da Copa?
Mas qual o sentido?
Considerei também o nome "Inhotim", museu que eu visitara há algum tempo, onde estão expostas obras de artistas brasileiros e que me causou forte impressão.
Mas também achei muito diferente do nome do sonho.
Ontem, no cartório judicial onde trabalho, organizando os autos para as audiências da semana, deparei-me com um processo de naturalização de um senhor jordaniano.
Ao final da página, centralizado, estava o nome do requerente. Seu primeiro nome era "Ibrahim".
Fiquei espantado com a coincidência, mas depois, ponderando um pouco, concluí que eu certamente já havia folheado aqueles autos e, por isso, o nome ficou em minha cabeça. Por isso apareceu no sonho.
Agora, por que eu mudara o meio do nome "Ibra-mo-him"?
A recordação do nome do museu, agora, parecia aproximar-se dos esforços oníricos. "Mo-him" e "nho-tim", pareceram-me próximos o suficiente.
Mas qual a relação entre o jordaniano, o museu e o jogador de futebol?
Quanto ao Jordaniano posso afirmar o seguinte: Gosto bastante de fazer as audiências de naturalização. Espanto-me todas as vezes que testemunho um estrangeiro tornar-se brasileiro.
Nesse processo ele renuncia a sua naturalidade, entregando ao poder público sua carteira de identificação de estrangeiro; a qual eu recolho para encaminhá-la ao Ministério da Justiça.
Ocorre que eu tenho um pai estrangeiro, que possui uma carteira daquelas. Todas as diferenças que sempre identifiquei em meu pai, o idioma, as crenças, o pensamento, enfim, a minha dificuldade em compreendê-lo, condensava-se naquele documento diferenciado, naquele pedaço de plástico, que não era verde como o documento dos demais brasileiros, como o meu.
Suponho que exista, atrás do nome "Ibramohim", um desejo de tornar meu pai brasileiro, tal como o jordaniano, em aproximá-lo de mim... de aproximar-me dele.
Aí entra o museu. No sonho, misturei o nome de Ibrahim com o nome Inhotim.
A viagem que fiz ao museu, a fiz acompanhado de meu pai. Há muitos anos não viajávamos juntos. E o museu é tipicamente brasileiro, com plantas brasileiras e obras de artistas nacionais.
Inserir o museu dentro do nome do jordaniano, foi como infligir uma proximidade com meu próprio pai, meu estrangeiro de longa data.
Essa interpretação, acredito, corrobora o desejo de aproximação.
Passemos a "Ibrahimovic", o jogador de futebol. Nada mais nacional que o futebol. Ainda mais em ano de Copa. Para contrastar com o estrangeiro. O nome do sonho "Ibramohim", portanto, condensa um desejo de aproximar um estrangeiro, meu pai, de meu país, das coisas que me são familiares. Aproximá-lo de mim.
Fica faltando entender a razão dos caracteres indecifráveis e porque a apresentação desses ideogramas assemelhavam-se a um poema concretista.
Suspeito que os caracteres estrangeiros remetem à distância cultural entre mim e meu pai. Afinal, ele pensa em outro idioma e, por vezes, também escreve e fala numa língua que me é estranha.
Por sua vez, a estrutura de poema concreto, para mim, está diretamente vinculada ao poeta Haroldo de Campos que, junto com seu irmão Augusto de Campos, inaugurou o movimento concretista no Brasil.
Qual a relação?
O que reputo significativo é que este poeta concretista traduziu para o português inúmeros poemas dos mais diversos idiomas estrangeiros: grego, japonês, russo...
Assim, embora compostas de caracteres indecifráveis, a disposição das frases no sonho remetem a um desejo de tradução dos caracteres, de versão do desconhecido para o familiar e, portanto, de apropriação do estrangeiro, de meu próprio pai.
Suspeito que o sonho indique um desejo de naturalizar o estrangeiro que tenho dentro de mim.... de verter para um idioma familiar o pai desconhecido que carrego comigo... eis uma audiência de naturalização que eu gostaria de fazer.