A burocracia é feita de "homens médios". O conceito jurídico abrange ambos os sexos e refere-se a um padrão de conduta equilibrado.
Os servidores de cartório são indivíduos que, considerada certa margem de erro, encontram-se dentro dessa faixa abstrata de equilíbrio.
Essa mediocridade não decorre, é obvio, da personalidade de cada um, mas de lei. O comportamento do funcionário público, suas atitudes, seus limites, suas atribuições, são determinados por lei. Leis estas que - ao menos em teoria - são feitas para o homem médio por homens médios.
A democracia, por exemplo, pressupõe que homens médios elejam seus representantes, estes também homens médios. Os iguais se reconhecem.
A máquina pública, este imenso edifício legal, construído com o fito de fazer cumprir a legislação, não poderia senão restringir, à média, a humanidade daqueles que operam na burocracia, mantendo-nos dentro de estreitos limites legais.
Agora, por certo existem pessoas na máquina púbica que estão longe dessa média decorrente da lei. Talvez existam gênios e certamente existem loucos; os felizes e os infelizes; os contentes e os amargurados...
Ocorre que, no cotidiano burocrático, essas características são cuidadosamente aparadas pela legislação.
Assim, todos os dias, um burocrata habita essa zona cinzenta e invariável da natureza humana.
Isso faz com que os dias se tornem perigosamente parecidos uns com os outros.
Há uma semana, após outro dia burocrático, retornei para casa e encontrei sobre a mesa um envelope.
"Mais um" - pensei. "Mais um como tantos outros que circulam na enorme máquina pública".
Abri o volume e dentro dele havia um prédio.
Era um edifício residencial como qualquer outro, como esses que surgem, do nada, pelas paisagens das grandes cidades do país.
Tinha sete andares e trinta e cinco apartamentos.
Olhando a fachada, notei duas coisas: o nome incomum e o fato de que o prédio não tinha entrada.
O edifício chamava-se "Poema". Circundei a construção, buscando uma porta. Pela frente não se entrava. Só haviam janelas. O mesmo ocorria pelo fundo.
Somente quando cheguei à face lateral direita do prédio é que vislumbrei uma porta comprida e sanfonada, como as páginas de um livro.
Logo ao entrar senti um cheiro forte, um cheiro de gente. Lembrei-me de uma discussão que tive com um Oficial de Justiça.
Discutíamos quais animais tinham o odor mais repugnante. Ponderamos as mais diversas espécies, mas, ao final, ele concluiu: "Agora, o que fede mesmo é gente".
Esse Oficial costumava cumprir Alvarás de Soltura no presídio local.
O cheiro não me incomodou. Por um lado, fiquei satisfeito em entrar em um edifício em que se sentia a presença humana.
Logo notei que não havia luz. O prédio parecia ter sido invadido. Pequenos focos saíam de dentro dos apartamentos, mas entre um e outro, nos corredores... puro breu.
Era um cortiço.
Olhei por uma porta semiaberta e vi, lá dentro, um jovem deitado, dormindo, com uma taça de abssinto ao lado. O nome dele é Rimbaud. Na janela do apartamento, um velho olhava a cidade e velava o rapaz com um olhar terno.
Era um olhar tão intenso que, mesmo eu estando diante do velho, ele não me percebeu. Eram amantes? Eram amigos? Eram parentes? Aquela breve espiadela encheu-me de humanidade.
O cheiro de gente impregnava a cena.
Envergonhado, deixei a porta. Voltei ao corredor escuro e deixei-me guiar pela luz do apartamento seguinte.
O brilho da tevê iluminava o cômodo. Sentado diante do aparelho, num canto do sofá deserto, estava um velho. Pude olhar à vontade, o senhor estava de costas para mim.
Contemplando-o, percebi que ele não via TV, mas pensava na morte. Remoía o assunto e ouvia uma voz que lhe dizia: "Não se mate".
Saí do cortiço. Voltei para casa. Era tarde, amanhã tinha que trabalhar.
Aqueles momentos dentro do prédio que chegara pelo correio fizeram-me ver, melhor, fizeram-me sentir além da zona cinzenta da humanidade cartorária.
Passei o dia seguinte com aquele cheiro de gente nas narinas e com o breu dos corredores na cabeça - alheio à assepsia burocrática.
Após o expediente, chegando em casa, voltei ao prédio. Já sabia o caminho, deixei-me guiar pelas luzes trêmulas que vazavam dos apartamentos. Parei diante da porta com a luz mais fraca. Espiei.
Vi dois corpos nus deitados numa cama. Um velho de oitenta e poucos anos e uma jovem prostituta. Conversavam. O velho, a pedido da moça, puxou um livro e leu-lhe um poema. Saí de mansinho.
Segui o corredor negro. Mais adiante, numa outra residência, uma mulher separava feijões, apenas para, dali a pouco, voltar a misturá-los. Nesse ritual, balbuciava algumas palavras, das quais distingui apenas uma: "Deus".
Suponho que orava. Estava só em sua prece? Ou o Senhor a ajudava com os feijões?
Passei quatro noites visitando o cortiço "Poema", perambulando por corredores e me esgueirando por frestas de portas semiabertas que exaravam o cheiro inconfundível de gente. Essas visitas restauraram em mim um pouco da humanidade que se perde entre carimbos e ofícios.
Indico, a quem um dia passar pela faixada inconfundível do edifício "Poema", que entre pela porta sanfonada e aventure-se pelos apartamentos habitados e pelos corredores negros desse adorável cortiço.
P.S.: "Poema" é o título do livro de contos do escritor Alex Andrade, publicado pela Editora Confraria do Vento. O texto acima, que não chega a ser uma resenha, é um breve relato da impressão que a obra me causou.