Desde a primeira vez que tive contato com os textos que se avolumam nas entranhas de cada processo judicial, deixando-os gordos, pesados e lentos, tive a impressão de que eles não eram claros. Em sua grande maioria, não tratavam de assuntos extremamente complexos, nem demasiadamente abstratos, mas, por alguma razão faziam-se difíceis de serem compreendidos.
As sentenças e decisões judiciais, bem como os pedidos formulados pelos advogados, via de regra, não têm como objeto questões especulativas, mas práticas. Não são textos que precisam ressignificar conceitos, ou reconstruí-los abstratamente, mas aplicá-los à realidade. E, no entanto, por alguma razão, os textos não parecem ancorados em nada palpável, concreto. Não parecem falar do mundo.
Mesmo as frases mais curtas, as descrições das coisas mais elementares, eram e são ainda carregadas de tecnicismos e chavões jurídicos autoreferentes, que não apontam para as coisas, mas apontam uns para os outros, para si mesmos.
Por essa razão, por essa sensação estranha que me perturbava ao abrir um processo, ao ler uma petição, nos últimos anos, andei indagando se era necessário que fosse assim. Ingressei no curso de Direito alimentando a esperança de entender porque a Justiça fala desse jeito cifrado.
Ocorre que nos últimos meses, percebi que, sem querer, havia deixado essa indagação original de lado e passado a naturalizar essa linguagem que tanto me incomodava no início.
A falta de clareza tornou-se um hábito. Deixei de sentir falta do real. Percebi que aceitara o jeito jurídico de escrever, alienado do mundo, sem sequer pensar sobre esse modo de dizer as coisas, apenas reproduzindo-o.
O que me fez cair em mim foi uma passagem do romance "A seguinte História", escrito pelo holandês Cees Nooteboom.
Numa certa altura, um dos personagens descreve o latim como um idioma claro, preciso e econômico, uma língua que exprime, de forma inequívoca, tudo o que precisa ser expresso com uma quantidade enxuta de palavras.
O fato é que, curiosamente, o Direito tem suas raízes fincadas na língua latina. Como foi que perdeu a capacidade de se expressar com a eficiência e a contundência de suas origens?
E foi assim que a questão retornou ao meu espírito.
Para explicar a atividade jurisdicional, o que deve fazer o poder judiciário, por exemplo, a cultura latina encontrou uma fórmula que confirma as ponderações do personagem criado por Nooteboom: "Da mihi factum, dabo tibi ius", dá-me o fato e eu te darei o direito.
Parece simples. Mas por que não é simples? Por que as petições, sentenças e decisões, em geral, são incompreensíveis para o "homem médio"?
Dá-me o fato e te darei o direito.
Abri uma sentença ao acaso e tive dificuldade em encontrar ali o fato. Busquei outra, e outra, e outra... até que me dei conta que, muitas vezes, os textos do Direito dedicam-se muito pouco aos fatos, passando diretamente para suas consequências jurídicas. Isso faz com que pareçam distantes da realidade e torna-os de difícil compreensão para o cidadão sem formação na área.
Agora, é necessário que seja assim?
Encafifado que estava com essa história, resolvi ler sentenças de tribunais de outros países. Encontrei no site de uma corte americana alguns julgados de um juiz chamado Richard Posner.
O texto de Posner é constrangedoramente claro. Ele se dá ao trabalho de, antes de discutir as consequências jurídicas de um fato, esmiuçar ao leitor (ao cidadão) esses fatos. Dar o direito, para Posner, não significa forçar o fato em algum diploma legal, mas se trata de compreender o fato em toda a sua singularidade, em suas minúcias, para só então verificar como é possível julgá-lo.
Uma das decisões de Posner que li foi, exatamente, uma a respeito dos direitos autorais sobre o personagem Sherlock Holmes. Posner julgou que Sherlock Holmes é de domínio público.
Há aí uma ironia. Posner, em sua decisão, franqueou o uso do raciocínio claro de Holmes. Suspeito que os operadores do direito brasileiro poderiam fazer uso desse modo de pensar. Agora sem pagar copyrights.