Hoje peço-lhes licença para fugir da proposta do blog.
Não falarei de burocracia, pois nesse final de semana conheci um menino chamado Pedro e gostaria de falar-lhes sobre ele:
Há muitos anos, quando ainda vivia no Rio, fui a uma festa no bairro da Gamboa, no Centro Cultural Municipal José Bonifácio, dedicado à cultura negra.
Quem dava a festa era uns candomblés... dois ou três, não me lembro bem quantos, nem os nomes. Fui com minha esposa, chegamos mais cedo, e testemunhamos parte da preparação da festa. Tudo era feito à mão pelos membros das casas: filhos e filhas, pais e mães de santos.
Negras e mulatas vestidas de rendas brancas recebiam os visitantes, preparavam a comida, serviam as bebidas, arrumavam as cadeiras e as mesas. Os homens nos apresentavam o Centro Cultural e os objetos em exposição. A música era tocada pelos membros das casas. Tudo o que os candomblés nos ofertavam, vinha dos candomblés.
Essa cerimônia com que eram arranjadas as coisas deixava aquela casa de Zé Boni familiar a todos que ali aportavam.
Tudo era acolhimento naquele final de tarde, no casarão da Gamboa.
Neste final de semana fui à Cotia conhecer meu sobrinho, que completou nesse mês de outubro dois anos de idade. Desde que nascera eu ainda não o havia visitado.
Cheguei de noite e, assim como aconteceu na casa de Zé Boni, pude ver os preparativos da festa.
Meu irmão pendurava as bandeirinhas e gelava as bebidas, o avô preparava a comida, montando, um a um, os aperitivos que seriam servidos, a mãe preparava as lembranças que as crianças levariam daquela festa e a avó arrumava a casa e pendurava uma renda branca na porta de entrada.
Lembrei-me da Gamboa, dos candomblés e do bem-estar que a festa feita pelas mãos dos anfitriões parece propiciar. Naquela noite, não pude conhecer o Pedro, pois já dormia, aguardando o dia seguinte, o dia de seu aniversário.
Então veio o sol e veio a festa, vieram as crianças, vieram os pais e tudo correu bem. Nesse dia, conheci meu sobrinho. Tudo foi acolhimento naquela tarde, naquele pedaço de Cotia.
Pedro nasceu no dia 20 de outubro. Há dois anos.
Jorge Amado conta, em "Mar Morto", que esse é o dia da festa de Iemanjá.
Iemanjá é a mãe mitológica do candomblé que, segundo o autor baiano, extravasou o mar pelo peito, em razão de uma grande proibição, a proibição do incesto.
As águas dessa orixá simbolizam essa proibição fundamental, formadora de nossa humanidade, de nossa dualidade que deseja e, ao mesmo tempo, nega o desejo. E a festa do dia 20, quando os pescadores se lançam ao mar, nos diz Jorge Amado, marca esse momento proibido, mitológico, em que a mãe se torna amante.
Na manhã depois do aniversário, Pedro, que eu conhecia fazia pouco mais de um dia, foi brincar com o avô na borda da piscina.
Era um domingo ensolarado e a água refletia um azul celeste.
Nos dois anos de vida de Pedro, suspeito que aquela água seja uma das mais concretas e constantes proibições de sua existência. "Não pode ir na piscina sozinho", "Não pode pular na água", "Não pode...".
Naquela manhã de domingo, Pedro, que nasceu no dia da festa de Iemanjá; que tinha diante de si a grande proibição, lançou-se na piscina azul... sem saber sobre o dia de Iemanjá, sem saber da mitologia do candomblé, sem saber das proibições, jogou-se.
O avô, que estava do lado, assustou-se com o ato impulsivo do neto e logo tirou-o da piscina, molhado, escorrendo.
Naquela manhã ensolarada de domingo, talvez sob a benção de Iemanjá, Pedro batizou-se nas águas de seu próprio inconsciente, batizou-se no simbolismo de seus desejos e de suas proibições.
Suponho que aquele mergulho tenha sido o início de uma longa jornada de contradições que Pedro irá viver. Fiquei imensamente feliz ao ver que, ao longo dessa caminhada, Pedro estará acompanhado de um ambiente e de uma família acolhedora.