Neste último ano do curso de Direito resolvi que me seria de alguma valia examinar o que foi que aprendi nessa graduação.
Não falo do conteúdo porque, quanto a este, basta botar os olhos no programa das disciplinas pregado em algum canto da faculdade para se deparar com o amontoado de coisas que se digere ao longo dos semestres.
Não me interessa o cardápio, com suas descrições refinadas e terminologia incomum que jamais sequer sugerem o sabor do alimento; tampouco quero saber da comida em si. Interessa-me, sim, o que fica desse longo processo digestivo, a memória da refeição, a textura das conchas de Saint-Jacques nas madeleines de Proust, é isso que me interessa.
Interessa-me saber as ideias que se constituíram em meu espírito durante essa ruminação jurídica, se alguma.
O caso é que, certamente, não foi este o curso que me formou, no sentido de ter me conferido uma forma, uma constituição intelectual e ética.
Essa formação, essa matriz que me acompanha como uma sombra, forjei-a no curso de filosofia da Universidade Federal do Paraná, já há alguns anos.
O curso de Direito foi antes um curso instrumental, instrumentalizou-me para operar num determinado nicho do mercado. O mercado das leis.
Assim, confesso que, olhando retrospectivamente para o passado próximo, custo a perceber nesse longo banquete de disciplinas jurídicas, entre sabores penais, cíveis, constitucionais, alguma memória gastronômica, alguma ideia que tenha resistido ao trato intestinal.
E há nessa constatação um certo mal estar, uma sensação de intoxicação alimentar causada pela ingestão de conceitos e práticas jurídicas antigas e emboloradas.
Mas não posso deixar de notar que entre os jargões acéfalos, entre fórmulas repetidas, entre o asfixiante pensamento burocrático, insistentemente constipado, é possível vislumbrar uma ideia, uma chama cuja intensidade, se não iluminou esse apagamento jurídico, teve a virtude de não se deixar extinguir.
Gostaria de contar-lhes sobre essa flâmula.
No segundo semestre do curso de Direito, matriculei-me na disciplina de Economia Política e em certa altura daquelas lições, que pouco se relacionavam com as demais matérias do curso, tive contato com as ideias do economista inglês Ronald Coase.
O conceito, que parecia iluminar os calabouços onde estavam postos a ferro os conhecimentos jurídicos que enchiam nossos cadernos, chamava-se: "opportunity cost".
Essa ideia pareceu-me revolucionária. Era algo como a descoberta do inconsciente por Freud.
O custo de oportunidade explicava os processos "inconscientes" que regiam as escolhas feitas num mercado livre a partir de uma pergunta simples "por que alguém decide abrir uma empresa?".
A elegante construção da resposta à essa pergunta apresentava a psicopatologia da vida numa sociedade capitalista; parecia expor, com detalhes, as nervuras da "mão invisível" de Adam Smith.
Não falo do conteúdo porque, quanto a este, basta botar os olhos no programa das disciplinas pregado em algum canto da faculdade para se deparar com o amontoado de coisas que se digere ao longo dos semestres.
Não me interessa o cardápio, com suas descrições refinadas e terminologia incomum que jamais sequer sugerem o sabor do alimento; tampouco quero saber da comida em si. Interessa-me, sim, o que fica desse longo processo digestivo, a memória da refeição, a textura das conchas de Saint-Jacques nas madeleines de Proust, é isso que me interessa.
Interessa-me saber as ideias que se constituíram em meu espírito durante essa ruminação jurídica, se alguma.
O caso é que, certamente, não foi este o curso que me formou, no sentido de ter me conferido uma forma, uma constituição intelectual e ética.
Essa formação, essa matriz que me acompanha como uma sombra, forjei-a no curso de filosofia da Universidade Federal do Paraná, já há alguns anos.
O curso de Direito foi antes um curso instrumental, instrumentalizou-me para operar num determinado nicho do mercado. O mercado das leis.
Assim, confesso que, olhando retrospectivamente para o passado próximo, custo a perceber nesse longo banquete de disciplinas jurídicas, entre sabores penais, cíveis, constitucionais, alguma memória gastronômica, alguma ideia que tenha resistido ao trato intestinal.
E há nessa constatação um certo mal estar, uma sensação de intoxicação alimentar causada pela ingestão de conceitos e práticas jurídicas antigas e emboloradas.
Mas não posso deixar de notar que entre os jargões acéfalos, entre fórmulas repetidas, entre o asfixiante pensamento burocrático, insistentemente constipado, é possível vislumbrar uma ideia, uma chama cuja intensidade, se não iluminou esse apagamento jurídico, teve a virtude de não se deixar extinguir.
Gostaria de contar-lhes sobre essa flâmula.
No segundo semestre do curso de Direito, matriculei-me na disciplina de Economia Política e em certa altura daquelas lições, que pouco se relacionavam com as demais matérias do curso, tive contato com as ideias do economista inglês Ronald Coase.
O conceito, que parecia iluminar os calabouços onde estavam postos a ferro os conhecimentos jurídicos que enchiam nossos cadernos, chamava-se: "opportunity cost".
Essa ideia pareceu-me revolucionária. Era algo como a descoberta do inconsciente por Freud.
O custo de oportunidade explicava os processos "inconscientes" que regiam as escolhas feitas num mercado livre a partir de uma pergunta simples "por que alguém decide abrir uma empresa?".
A elegante construção da resposta à essa pergunta apresentava a psicopatologia da vida numa sociedade capitalista; parecia expor, com detalhes, as nervuras da "mão invisível" de Adam Smith.
Ronald Coase identificou que uma pessoa abre um negócio porque acredita que é capaz de produzir o que o mercado oferece a um custo menor... e sobre essa crença - quantificável - ele toma suas decisões: contratar, demitir, poluir, não poluir, etc.
Enfim, trata-se de uma ideia que quantifica a perversidade, a sagacidade, a frieza e os equívocos das decisões numa economia de mercado, que antes não eram atribuídas a ninguém, mas à entidade da "demanda e da oferta".
Assim como Freud mostrou como nos deixamos guiar por um cálculo caprichoso de nossos desejos, Coase evidenciou que as escolhas numa economia são oriundas de um frio cálculo de custos de oportunidade.
As aulas dessa disciplina, que não prometia lá grande coisa, tiveram a virtude de expor, detidamente, a força de uma ideia e esclarecer as incontáveis novas possibilidades de interpretação do mundo que se abriam a partir dela.
Entre esses novos caminhos possíveis, inesperadamente, apontou-se para o Direito.
No curso de Economia Política (!), abriu-se a possibilidade de entender o Direito não como a manifestação, quase sagrada, do poder do Estado, mas como um custo.
Essa nova ideia retirou a autoridade semidivina dos conteúdos que compunham a ementa do curso para colocá-los como algo que só se deve racionalmente validar se seu custo social for justificado.
A crença de que havia algo superior, transcendental, validando o Direito e garantindo o nosso bem caiu por terra. A decisão por obedecer a lei só se sustentaria se o custo dessa obediência fosse suportável.
Era uma ideia capaz de quantificar até que ponto uma lei deveria ser seguida. Era uma ideia capaz de tirar um indivíduo de uma obediência cega.
Como a descoberta dos mecanismos do inconsciente, que nos mostrou que a repressão tem um custo - as neuroses, por exemplo -, e da "mão invisível", que nos mostrou que as escolhas econômicas têm também um custo; no âmbito do Direito, a ideia de Coase nos mostrou que o Estado e sua positivação nas leis também o têm.
Essa nova ideia arejou meus anos de graduação e, como disse, se não foi capaz de iluminar o resto das disciplinas, teve a virtude de não se deixar apagar.
Esse curso de Economia Política foi ministrado pelo professor Márcio Canedo.
Enfim, trata-se de uma ideia que quantifica a perversidade, a sagacidade, a frieza e os equívocos das decisões numa economia de mercado, que antes não eram atribuídas a ninguém, mas à entidade da "demanda e da oferta".
Assim como Freud mostrou como nos deixamos guiar por um cálculo caprichoso de nossos desejos, Coase evidenciou que as escolhas numa economia são oriundas de um frio cálculo de custos de oportunidade.
As aulas dessa disciplina, que não prometia lá grande coisa, tiveram a virtude de expor, detidamente, a força de uma ideia e esclarecer as incontáveis novas possibilidades de interpretação do mundo que se abriam a partir dela.
Entre esses novos caminhos possíveis, inesperadamente, apontou-se para o Direito.
No curso de Economia Política (!), abriu-se a possibilidade de entender o Direito não como a manifestação, quase sagrada, do poder do Estado, mas como um custo.
Essa nova ideia retirou a autoridade semidivina dos conteúdos que compunham a ementa do curso para colocá-los como algo que só se deve racionalmente validar se seu custo social for justificado.
A crença de que havia algo superior, transcendental, validando o Direito e garantindo o nosso bem caiu por terra. A decisão por obedecer a lei só se sustentaria se o custo dessa obediência fosse suportável.
Era uma ideia capaz de quantificar até que ponto uma lei deveria ser seguida. Era uma ideia capaz de tirar um indivíduo de uma obediência cega.
Como a descoberta dos mecanismos do inconsciente, que nos mostrou que a repressão tem um custo - as neuroses, por exemplo -, e da "mão invisível", que nos mostrou que as escolhas econômicas têm também um custo; no âmbito do Direito, a ideia de Coase nos mostrou que o Estado e sua positivação nas leis também o têm.
Essa nova ideia arejou meus anos de graduação e, como disse, se não foi capaz de iluminar o resto das disciplinas, teve a virtude de não se deixar apagar.
Esse curso de Economia Política foi ministrado pelo professor Márcio Canedo.
Canedo apresentou-nos o custo da obediência à autoridade Estatal... um custo quantificável e que não deve ser suportado sem um cálculo ou crítica. Mostrou-nos que é de responsabilidade do sujeito que se submete às leis calcular até que ponto são válidos os custos dessa submissão.
A ideia do custo de oportunidade, apresentada por Canedo, urge que não nos alienemos dos custos implicados em nossas escolhas.
Não é de se espantar que esse mesmo professor, neste ano de 2014 em que se completaram 50 anos do Golpe Militar, tenha sido o único (até onde eu sei) a dedicar algumas de suas aulas para revisitar os acontecimentos desse período histórico de sistemático cerceamento de direitos fundamentais.
Justamente nesse Estado do Centro-Oeste brasileiro onde existem fortes resquícios do militarismo e do autoritarismo, Canedo parece ser a única voz no curso de Direito - justo no curso de Direito - a atentar para o custo da liberdade, para o custo da democracia, para o custo dos Direitos Humanos.
Enfim, a chama de uma grande ideia, bem ou mal, tremula ainda pelos corredores do prédio de Direito. Eis aí algo que moldou a maneira como penso.
Não é de se espantar que esse mesmo professor, neste ano de 2014 em que se completaram 50 anos do Golpe Militar, tenha sido o único (até onde eu sei) a dedicar algumas de suas aulas para revisitar os acontecimentos desse período histórico de sistemático cerceamento de direitos fundamentais.
Justamente nesse Estado do Centro-Oeste brasileiro onde existem fortes resquícios do militarismo e do autoritarismo, Canedo parece ser a única voz no curso de Direito - justo no curso de Direito - a atentar para o custo da liberdade, para o custo da democracia, para o custo dos Direitos Humanos.
Enfim, a chama de uma grande ideia, bem ou mal, tremula ainda pelos corredores do prédio de Direito. Eis aí algo que moldou a maneira como penso.
Este semestre, ao que parece, a turma que se forma levará o nome desse professor. Não me formarei com eles, mas fica aqui meu agradecimento ao professor, e à ideia, se é que ambos não se confundem.