Há alguns dias secretariei uma audiência de instrução dum processo na qual foi ouvida uma única testemunha.
Nos autos, discutia-se se o Instituto Nacional do Seguro Social -INSS deveria ou não reconhecer o tempo de serviço rural de uma senhora que desejava se aposentar.
É difícil a comprovação dos períodos trabalhados pelos rurícolas, pois não são atividades comumente documentadas, ainda mais quando os fatos se deram há décadas atrás.
Para decidir tais casos, não raro o judiciário se apoia na prova testemunhal.
O objetivo da colheita daquele depoimento era saber se a autora da ação tinha ou não trabalhado em alguma atividade rural e por quanto tempo.
Feita a qualificação da testemunha, nome completo, documento, endereço, etc, o juiz perguntou-lhe: "A senhora conhece a autora?"
-"Sim, eu trabalhei mais ela na época do sítio."
-"Há quanto tempo a senhora trabalhou com a autora?"
-"Uns nove a onze anos".
-"Nove a onze? Então a senhora trabalhou com a autora no sítio, mais ou menos entre 2003 e 2005?".
-"Não senhor. Nove a onze anos... mais ou menos quando nós tínhamos nove a onze anos de idade".
Esta última interpretação, da frase imprecisa: "Uns nove a onze anos", tão elementar para a testemunha, jamais sequer cruzou meus pensamentos enquanto eu digitava o seu testemunho.
O tempo de trabalho rural que se estava tentando comprovar naquela tarde, na sala de audiências, era um tempo de trabalho rural infantil.
Dali em diante, ouvi-a discorrer sobre as atividades rurais a que se dedicava e sentia uma certa dificuldade em imaginá-las sendo realizadas por uma criança.
Era uma dificuldade interpretativa, de transportar-me para o tempo e o lugar do texto. Um tempo e um país onde não havia infância.
Ouvi-la era como ler o relato de "Mohammed Gardo Baquaqua", nascido livre em Zoogoo, na África Central e trazido como escravo para o Brasil em 1845.
Há, na leitura desse livro, "An interesting narrative. Biography of Mahommah G. Baquaqua", como houve na audiência de instrução, uma certa dificuldade em se colocar no lugar e no tempo do narrador.
Bens jurídicos que consideramos indisponíveis, nessas narrativas, mostram-se tão ou mais desprotegidos que qualquer bem de consumo: a infância e a dignidade humana.
Nos autos, discutia-se se o Instituto Nacional do Seguro Social -INSS deveria ou não reconhecer o tempo de serviço rural de uma senhora que desejava se aposentar.
É difícil a comprovação dos períodos trabalhados pelos rurícolas, pois não são atividades comumente documentadas, ainda mais quando os fatos se deram há décadas atrás.
Para decidir tais casos, não raro o judiciário se apoia na prova testemunhal.
O objetivo da colheita daquele depoimento era saber se a autora da ação tinha ou não trabalhado em alguma atividade rural e por quanto tempo.
Feita a qualificação da testemunha, nome completo, documento, endereço, etc, o juiz perguntou-lhe: "A senhora conhece a autora?"
-"Sim, eu trabalhei mais ela na época do sítio."
-"Há quanto tempo a senhora trabalhou com a autora?"
-"Uns nove a onze anos".
-"Nove a onze? Então a senhora trabalhou com a autora no sítio, mais ou menos entre 2003 e 2005?".
-"Não senhor. Nove a onze anos... mais ou menos quando nós tínhamos nove a onze anos de idade".
Esta última interpretação, da frase imprecisa: "Uns nove a onze anos", tão elementar para a testemunha, jamais sequer cruzou meus pensamentos enquanto eu digitava o seu testemunho.
O tempo de trabalho rural que se estava tentando comprovar naquela tarde, na sala de audiências, era um tempo de trabalho rural infantil.
Dali em diante, ouvi-a discorrer sobre as atividades rurais a que se dedicava e sentia uma certa dificuldade em imaginá-las sendo realizadas por uma criança.
Era uma dificuldade interpretativa, de transportar-me para o tempo e o lugar do texto. Um tempo e um país onde não havia infância.
Ouvi-la era como ler o relato de "Mohammed Gardo Baquaqua", nascido livre em Zoogoo, na África Central e trazido como escravo para o Brasil em 1845.
Há, na leitura desse livro, "An interesting narrative. Biography of Mahommah G. Baquaqua", como houve na audiência de instrução, uma certa dificuldade em se colocar no lugar e no tempo do narrador.
Bens jurídicos que consideramos indisponíveis, nessas narrativas, mostram-se tão ou mais desprotegidos que qualquer bem de consumo: a infância e a dignidade humana.