2 de dezembro de 2014

São

   Outro dia, dentre as infinitas petições que ingressam diariamente no cartório, deparei-me com um laudo psiquiátrico.
   Nele, o médico concluía que o periciando era esquizofrênico. Até aí, nada de novo. Mais um diagnóstico dentre os milhares que povoam os processos judiciais.
    O que me chamou a atenção foi o lampejo de literatura, no meio da massa de textos burocráticos, que apontou num parágrafo do laudo; o psiquiatra deu-se ao trabalho de, no corpo de seu relatório, reproduzir um trecho da conversa que teve com o paciente.
   Essas parcas linhas, esses raros momentos, essas pequenas gentilezas que nos fazem alguns operadores do direito, renovam o ar estagnado da repartição pública. É como um trago de boa bebida ao encarcerado.... a mim, que vivo os dias repetitivos da burocracia.
    Pois entre as perguntas e as respostas rotineiras do laudo técnico, o perito descreveu, sucintamente, que, perguntado sobre o que lhe incomodava, o paciente respondeu: "Às vezes, penso que toda realidade é uma ilusão, mas eu sinto que não é só isso".
    Quando o perito indagava o que ele queria dizer com essa afirmação, ele repetia a frase.
  Este diálogo, acrescentado ao histórico médico do paciente e a outros elementos, permitiu ao psiquiatra concluir tratar-se de um esquizofrênico.
   Sentado em meu posto de trabalho, longe do médico e do paciente, alheio ao bem jurídico discutido no processo, lendo aquele trecho, fiquei me perguntando se a insanidade reportada no laudo decorria de um afastamento da realidade, ou se de uma perturbadora proximidade do real, de um excesso de lucidez.
   Entre um pensamento e outro, voltei ao processamento das petições, esses documentos que ditam a normalidade do judiciário, que me mantém afastado da loucura, ancorado no real... embora, às vezes, observando a máquina burocrática em seu movimento infinito, eu pense que toda a realidade é uma ilusão, mas sinto que não é só isso.