Aos
amigos Regina e Guilherme,
que
andam a lançar âncoras de
ar,
Ícaros
melhorados.
Há
algo no silêncio das árvores que seduz os que amam profundamente. É
um silêncio misericordioso e benevolente, que parece atrair as
confissões dos amantes, sem impor-lhes o fardo do julgamento. Pelo
seu amplo vão sem paredes, sustentado por uma coluna central em cujos veios correm a seiva da vida, não se agarram culpas ou preconceitos; e
existem amores que, talvez, somente nessa quietude indolente –
livre de morais e costumes – encontram abrigo.
O
sussurro das folhas secas e o frescor do chão, protegido pelas
sombras, acalentam as almas que ali buscam refúgio. “Vinde a mim”,
parecem dizer as árvores aos que amam livremente – visto que são
os amores livres que se aventuram nas profundezas do sentimento.
As
raízes subterrâneas tornam firme o solo, como os alicerces das
catedrais, e sobre elas edifica-se o terno silêncio. Pois sim, a
ternura exige firmeza.
Sob
o sol ou sob a lua, os galhos e folhas das árvores formam lindos
vitrais, que pontilham os corpos dos que ali se entregam. Foi assim
com o Cristo, antes da crucificação. Prevendo a morte, angustiou-se
ao pé de uma oliveira e ali ponderou o valor de sua vida, que
certamente, como homem, amava, e o valor de sua amada fé. Sob a
sombra da catedral de galhos e folhas retorcidas, a balança oscilava
tênuamente… valia a pena morrer pelo que acreditava? O fiel
equilibrava com maestria as opções do Cristo, que, com o peito
apertado, precisava se decidir. Deveria se submeter ao sacrifício
anunciado nas profecias? “O suor tornou-se como grossas gotas de sangue a
escorrer-lhe por terra”, diz-nos Lucas sobre a angústia do Deus
tornado homem. Ali, suponho, sob o silêncio arbóreo, o Cristo escolheu morrer de
amor.
Recordam
os cristãos, todos os anos, a decisão tomada por esse homem sob as
folhas da oliveira.
Milênios
depois, num ato muito mais humilde, mas que ecoa o amor nazareno,
amaram-se os amantes de Wislawa Szymborska, sob uma árvore, à
beira de um lago:
“Amaram-se
debaixo da aveleira
sob
sóis de orvalho
com
folhas secas e terra
grudadas
no cabelo
Ajoelhados
à beira do lago,
as
folhas retiraram,
e
reluzentes, como estrelas,
os
peixes se aproximaram”.
Agora,
a poetiza polonesa aflige-se com a fragilidade desse amor. Ela sabe
que, ao contrário da decisão de Cristo, a escolha desses amantes,
sob a aveleira, talvez não viva para sempre, talvez se esvaia com o
tempo, não suporte os milênios, apague-se da memória de ambos, até que não haja mais nenhum
resquício daquele amor.
Não
existirão disputas acadêmicas sobre o sentimento que fez tremer aqueles corpos sob a aveleira, não se
derramará sangue por aquela lembrança, não se erguerão templos
por aquele evanescente evento, sabe a
polonesa.
Por isso,
aquele amor, a poetiza quer salvá-lo, não quer que se perca.
Szymborska
invoca então a piedade de quem presenciou aquele ato sob o domo de galhos e folhas.
Pede encarecidamente a uma andorinha que não deixe que os amantes se esqueçam do amor vivido sob o vitral de orvalho.
“Coração
de andorinha
tem
piedade deles.
O
reflexo das árvores
nas
marolas esfumaçado,
andorinha,
faz com que nunca
seja
por eles olvidado”.
Mas
como? Como pode uma andorinha, essa testemunha oculta, manter viva a lembrança de um momento?
Como pode aquele passarinho fixar no elemento volátil da memória
as tênues recordações que, para os amantes, ainda estão tão
frescas e presentes quanto o cheiro das folhas, da terra, quanto as
nuvens do céu? Como, meu Deus, prender uma nuvem e evitar que ela se
perca na imensidão do firmamento?
Szymborska
sabe que aquilo que pede à andorinha é tarefa das mais ousadas ao
espírito: Apreender o inapreensível. Tocar o intocável, como quis
Ícaro, com suas asas de cera.
Apesar da impossibilidade da empreitada, a piedade de Szymborska é
maior, e ela invoca a andorinha, com as qualidades que o pequeno
pássaro irá precisar para capturar a memória volátil. Como a deusa Atenas, Szymborska concede à andorinha as virtudes necessárias para que a ave alcance seus propósitos.
“Andorinha,
espinho de nuvem,
âncora
do ar,
Ícaro
melhorado (...)”
Szymborska
se dá conta de que a lembrança da andorinha talvez sirva como uma
âncora para o barco fátuo de recordações dos amantes, um espinho no qual
fique agarrada a memória. Szymborska
inventa um jeito, metafórico, de prender as reminiscências que, por certo, vão se esvair. Ao ver uma andorinha, “âncora do ar”,
“espinho de nuvem”, cruzar o céu, talvez eles rememorem aquele instante sob a
aveleira.
Então,
ao final do poema, Szymborska, com o coração cheio de piedade por
aqueles amantes, começa a lançar inúmeras âncoras e espinhos para
que a memória não seja levada pelo tempo, para que, ao se deparar
com as mais simples contingências do cotidiano, os amantes rememorem
aquele momento debaixo dos vitrais de orvalho:
“andorinha
caligrafia,
ponteiro
sem os minutos (…)
andorinha
silêncio agudo,
luto
alegre,
auréola
dos amantes,
tem
piedade deles”.
Tantas
âncoras e espinhos são lançados para segurar quela lembrança:
“caligrafia”, “ponteiro sem os minutos”, “silêncio agudo”,
“luto”, “auréola dos amantes”… quando um daqueles amantes,
dos quais se apieda Szymborska, num futuro distante, estiver contemplando um relógio,
aguardando o tempo passar, quando estiver lendo um texto com uma
linda caligrafia, quando alguém amado se for, quando vir dois
amantes alegres andando pela rua, nesses pequenos acontecimentos estará agarrada, ancorada uma lembrança e virá à sua mente a tarde em que
se amaram sob a aveleira: “O reflexo das árvores/nas marolas
esfumaçado (...)”.
Szymborska sabe, como o Cristo na noite que antecedeu a crucificação, que a memória precisa de migalhas para seguir, que ela precisa ser pregada em elementos que a resgatem do esquecimento: "Isto é o meu corpo, que será entregue por vós. Fazei isto em minha memória".
O
que mais poderia fazer Szymborska? Com essas âncoras lançadas, a
poetiza encerra o poema, como o fez, nas aventuras dos “Velhos
Marinheiros”, de Jorge Amado, o capitão Vasco Moscoso de Aragão,
capitão de longo curso, único, dentre os velhos marinheiros, a
prever os ventos, a lançar todas as amarras, todas as âncoras,
todos os “strings” todas as espias, todas as manilhas, todos os
ferros e salvar o seu navio.
Rememorar,
rememorar, lançar aos amantes pequenos espinhos onde se agarrarem as
memórias, é o que pode a piedade de Szymborska.
Ao
verter o poema
Upamiętnientie
(Rememoração) para
o português, a tradutora
Regina Przybycien lançou mais uma âncora,
mais um espinho de nuvem, para que o amor sob a aveleira, descrito
por Szymborska
não se perdesse, para que a própria poesia fosse rememorada.
“Coração
de andorinha
tem piedade
deles”.
Essas
âncoras do poema de Szymborska, esses espinhos, não encontram melhor tradução em
imagens que as fotografias “monotrípticas” do amigo Guilherme
Ghizoni, espinhos de nuvens nos quais se agarram as mais voláteis memórias, âncoras de ar.
Emociona-me
ver amigos buscando o inalcançável, Ícaros melhorados.
Abaixo,
o poema traduzido por Regina Przybycien e
um dos "monotrípticos" de Guilherme Ghizoni:
Rememoração
Amaram-se
debaixo da aveleira
sob
sóis de orvalho
com
folhas secas e terra
grudadas
no cabelo.
Coração
de andorinha
tem
piedade deles.
Ajoelhados
à beira do lago,
as
folhas retiraram,
e
reluzentes, como estrelas,
os
peixes se aproximaram.
Coração
de andorinha
tem
piedade deles.
O
reflexo das árvores
nas
marolas esfumaçado,
andorinha,
faz com que nunca
seja
por eles olvidado.
Andorinha,
espinho de nuvem,
âncora
do ar,
Ícaro
melhorado,
fraque
ascendido ao céu,
andorinha
caligrafia,
ponteiro
sem os minutos,
protopássaro
gótico,
estrabismo
nos céus,
andorinha
silêncio agudo,
luto
alegre,
auréola
dos amantes,
tem
piedade deles.
(SZYMBORSKA,
Wislawa, Um amor feliz,
Companhia das Letras, 2016. Trad. Regina Przybycien)
Fotografia: Guilherme Ghizoni