“De
acordo com um provérbio africano,
se
você quer ir rápido, vá sozinho.
Mas
se você quer ir longe, vá acompanhado.
Nós
temos um longo caminho à nossa frente;
nós
só poderemos percorrê-lo se formos juntos".
Kofi
Annan
Campo
Grande é uma cidade que se espraia pela planura do Cerrado. É como
um grande pedaço de charque cortado fino e aberto no ar seco. As
quadras são imensas, quase intransponíveis; entre uma esquina e
outra parece que se desdobra um deserto. As calçadas sem sombras,
sob o calor do Planalto Central, estão sempre vazias. A ausência de
gente indo e vindo pelas vias torna a urbe impessoal; um corpo que
caminha é sempre estranho na paisagem.
Não
há testemunhas em Campo Grande. As coisas acontecem em segredo e só
depois de algum tempo é que o segredo se espalha, já distorcido, às
vezes aumentado, outras, sufocado.
Dia
desses eu estava sentado num bar, olhando a rua vazia, devia ser lá
por quatro horas da tarde, quando notei uma menina caminhando pela
calçada, com uma pasta de plástico debaixo do braço e um rolo de
durex enfiado no pulso, como um bracelete. De onde ela viera?
Campo
Grande tem dessas coisas. Por mais plana
que seja a cidade,
por mais que a vista alcance longe, quando notamos uma pessoa
andando, nunca temos certeza de onde ela apareceu. Tem-se a impressão
de que os solitários corpos que caminham pelas ruas vazias surgem do
nada e no nada se esvaem.
Essa
menina tinha cabelos negros e compridos, que estavam um
pouco desarrumados, vestia uniforme escolar, meio surrado, que
indicava que ela provavelmente estudava no período matutino e não
trocara de roupa desde o final das aulas. Era magra, seu corpo
mirrado mal preenchia a camiseta e a calça, cujos panos oscilavam
igual bandeiras à medida que caminhava. No pulso esquerdo, o rolo de
durex dançava solto, quase escapando pela mão, mas a menina
habilmente erguia o antebraço e dobrava a munheca quando a fita
queria escapulir. Aquela criança não tinha mais de treze anos de
idade, suponho, e vagava sozinha pelas ruas desertas de Campo Grande.
Pois
essa pequena figura feminina parou perto de um poste na esquina,
tirou um papel de dentro da pasta e ali o colou com a fita durex.
Caminhou incontáveis passos até chegar ao poste que ficava no meio
da quadra e repetiu a operação. Fez o mesmo no poste da outra
esquina, perto do bar onde eu estava.
Havia
uma certa tristeza no seu jeito de andar, o seu corpo parecia
retesado. Notei que, de tão miúda, ela quase não tinha sombra.
Quando passou por mim, vi que chorava, tinha um semblante sombrio, o
nariz irritado pela coriza do choro, a boca arqueada para baixo e os
lábios firmemente apertados. Debaixo do sol quente, alguns fios de
cabelo colavam no suor e nas lágrimas do rosto.
Sozinha,
ela seguia seu rumo, com sua pulseira improvisada, parando a cada
poste, pregando os papéis que levava dentro da pasta. De quadra em
quadra, aquela figura quase sem sombra sumiu pelas esquinas da
cidade.
Sentado
no bar, notei o vazio reocupar a rua. Era como se a passagem da
menina nunca tivesse ocorrido. O que será que ela tanto pregava? Por que chorava? Não dei muita importância a esses pensamentos, transmitiam um jogo de futebol na televisão, algum
campeonato europeu com times cheios de jogadores e técnicos
estrangeiros. Como será que se comunicavam? Entendiam o que uns
gritavam para os outros, ou o que cantavam as torcidas? Por que será
que ainda faziam distinções entre campeonato inglês, alemão,
francês, espanhol, se os times, de fato, eram torres de Babel?
Com
o final da partida, ao olhar para rua, a
curiosidade, mais uma vez, despontou em meu espírito.
Por quse duas horas a dúvida hibernara. O que eram aqueles cartazes?
Já
começava a escurecer e, de meu posto, não era
possível ver o que havia nos papéis. Levantei-me e fui até a
esquina. No poste, um cartaz que não fazia muito sentido: Nele
estava estampada a foto da própria menina. No início, foi difícil
reconhecê-la, pois naquela fotografia seus olhos cintilavam, ela
sorria um sorriso imenso, acenava para a câmera e tinha a cabeça
coberta por um véu muçulmano, hijab, de cor turquesa. Não
lembrava a figura triste que passara na frente do bar mas, com
certeza, era a mesma menina. A informação, escrita numa redação
um pouco truncada, com erros de grafia, era de que aquela criança
estava desaparecida, sumira na tarde daquele dia, fora vista pela
última vez saindo da escola, família aflita, telefone de contato,
chamava-se “Najwa”, recém-chegada da Síria, falava pouco o
idioma português.
Em
frente ao poste, de pé, olhei para o rumo que a menina
havia tomado, mas só havia a rua.
Por
que ela pregava fotos de si mesma, informando seu próprio
desaparecimento, pedindo que a encontrassem?
Anotei
o telefone e voltei para o bar.
Na
TV, apresentadores discutiam o jogo que terminara há pouco. Quem
havia sido o melhor jogador da partida? O meio-campo colombiano, do
time espanhol ou o atacante croata do time italiano?
Pensando
sobre o cartaz, concluí que não era de todo estranho.
De
fato, aquela menina feliz da fotografia desaparecera. Por certo sumiu
quando deixou seu País, seus amigos, seus costumes, vindo
desembarcar nessa terra desconhecida onde não se vê gente pelas
ruas. Com certeza, a família a queria de volta, alegre, sorridente.
Quem mais sentia sua falta era a própria Najwa. Tinha saudades de si
mesma, da Najwa que sorria com olhos brilhantes e que vestia hijabs
coloridos. Talvez por isso, com o pouco português que aprendera,
tenha redigido aquele pedido de ajuda, por isso saíra aquela tarde,
sob o sol do Cerrado, sozinha, colando cartazes, na esperança de que
alguém, nesse mundo estrangeiro, a encontrasse.
Voltei
a olhar a rua e, por ela, pelos postes, não passou uma viva alma. Um
ou outro carro transitava pela via, alheio às calçadas. Aqueles
cartazes não seriam lidos. Ninguém caminha pelas ruas de Campo
Grande, não há testemunhas nessa cidade. Ninguém encontrará
aquela menina sorridente que desapareceu de uma família síria.
Ninguém saberá que está perdida.
A ignorância é uma bênção.
A ignorância é uma bênção.
Liguei
para o número do cartaz. Após alguns toques, ouvi uma mensagem num
idioma desconhecido. Enquanto ouvia aquela entoação estranha de
sons misteriosos,
os
comentaristas esportivos concluíram que o melhor jogador da partida
havia sido um lateral romeno, do time italiano.