Cicatrizes
fecham
Mas
renascem
Na
memória.
Samarone
Há
dez anos meti-me a percorrer o Brasil de ônibus. Naquela época,
tinha umas parcas economias, um diploma de bacharel em filosofia e
mais nada. Dessas três coisas que detinha, a única que me era de
alguma serventia prática era esse “mais nada”; era ele que me
dava certa perspectiva de vida, que me libertava. Era com esse “mais
nada” que algo poderia ser feito. Então, para ocupar esse grande
descampado que se espraiava diante de mim, achei por bem pegar a estrada e
ser passageiro pelo tempo que o dinheiro poupado permitisse.
O
“mais nada” deu-me um vazio a ser preenchido, as escassas
economias asseguraram as passagens de ônibus e a filosofia - sejamos justos com a filosofia - aplacou a
solidão dessa jornada.
Já
havia cruzado mais de três mil quilômetros de caatinga, cerrado e
floresta, contemplando esse país pelas janelas amplas dos ônibus e
pelas rodoviárias escondidas em lugares pouco atrativos dos
municípios brasileiros, quando decidi deixar o Estado do Piauí e ir
ter com o Ceará.
Não me lembro o nome da viação responsável pelo remendo de automóvel em que eu e mais trinta e poucas almas sacolejávamos, para poder dar nome aos bois aqui neste texto e fazer uma justiça tardia contra a prestadora dos serviços, mas o fato é que o ônibus quebrou. Era noite e o motorista teve que encostar a viatura no município mais próximo e aguardar o reparo do automóvel.
Estávamos na divisa entre os dois Estados. Estacionamos na cidade de Chaval. Lembro-me que à época o nome do lugar me soou poético, diferente dos nomes indígenas, de santos ou de acidentes geográficos que costumam batizar os povoados brasileiros, Chaval era um vocábulo estranho, que parecia ter sido inventado.
Saindo
da rodovia estadual e entrando no perímetro urbano, notei que as
ruas do pequeno município, mal iluminadas, estavam tomadas de gente,
de saias e de pernas.
Nas
praças, mulheres andavam em grupos, algumas vigiavam crianças que
corriam soltas no espaço público, outras conversavam sentadas nos
bancos ou nos meios-fios, com as pernas cruzadas, invadindo a rua. Na
frente das casas, sentadas em cadeiras baixas, de plástico, mais
mulheres se reuniam. Dentro dos bares, mulheres serviam outras
mulheres que bebiam cerveja no balcão.
O ônibus manobrava pela cidade e não
se via homens pelas ruas de Chaval.
Uma vez desembarcado, resolvi caminhar pelas redondezas, pois o mecânico estava em outro município
e demoraria um tempo para chegar. Batendo perna por aquele lugar
perdido no interior do nordeste, constatei, de fato, tratar-se de uma
cidade habitada apenas por mulheres e crianças. Se varões haviam,
estavam enfurnados dentro das casas, pois nas pequenas lojas, nos
postos de gasolina, nas lanchonetes e padarias, nas motos e carros
que cruzavam as ruas daquele lugar, somente se viam mulheres.
Sentei-me
num canto da praça e observei a gente de Chaval vivendo sua vida
feminina. Havia uma presença masculina naquele cotidiano, é
inegável, mas era como se os homens só estivessem ali como memória
nas cabeças, nos atos, no andar, no falar, no beber, no viver daquelas
mulheres e crianças.
Haviam
homens, mas homens ausentes.
Aquilo me pareceu um mistério, uma realidade tirada de lendas pagãs. Um lugar inventado.
Retornei
à rodoviária, entrei no ônibus que acabara de ser consertado e
segui meu rumo.
À
medida que me afastava daquela cidade, Chaval deixava de ser um lugar
no mundo e tornava-se um lugar em minha alma. Um lugar com o frescor
de um pequeno mistério.
Longe
de Chaval mais de três mil quilômetros, o dinheiro para as
passagens de ônibus acabou, o “mais nada” que eu tinha se preenchera com
recordações de pessoas e lugares como aquela cidade na divisa do
Ceará com o Piauí. Deixei de ser passageiro. Acomodei-me num canto,
numa repartição pública.
Uma década depois dessa peregrinação e fatigado com as repetições tediosas e chãs da burocracia
onde hoje me encontro, às vezes revisito esse lugar chamado Chaval, onde meu
espírito se reaviva com a lembrança de que há algo inescrutável
na realidade.
Hoje
tenho um trabalho que me fixou numa subseção da administração pública no
Cerrado brasileiro, um diploma de bacharel em filosofia e,
de novo, mais nada. Esse “mais nada” de agora me põe em viagens
por lugares imaginários.
Numa
dessas visitas aos recôncavos de minha alma, para além de Chaval,
para além desse lugar de mistérios femininos, descobri um via nova,
uma estrada para um lugar que até então eu desconhecia, com um nome
estranho e poético chamado Samarone.
Fui
parar em Samarone como parei em Chaval. Desavisado. Talvez porque
algo em mim se quebrara, como o ônibus na divisa entre o Piauí e o Ceará.
Samarone
tem a concretude do mistério feminino de Chaval. Tem o cheiro fresco da
incógnita que se desdobra diante de nossos olhos abertos. É um lugar habitado por pessoas que não estão mais ali, exceto pelas maneiras como são lembradas, como os
homens de Chaval.
Pelas
vias de Samarone, pelas vias em formas de versos, encontramos gentes,
gentes as mais diversas que estão ali, mas estão ausentes.
“Algumas
perguntas são prematuras
Como
o irmão que nasceu antes
E
não vingou”.
Vim
parar nesse lugar chamado Samarone porque algo em mim se quebrou.
Agora, aos poucos, como Chaval, Samarone torna-se um lugar em meu
espírito.
Observação: os versos que transcrevi nesse texto foram retirados do livro “A Invenção do Deserto”, de Samarone Lima. Vale a leitura? Vale a jornada!