Corumbá. Fronteira seca entre o Brasil e a Bolívia. Quarenta graus
Celsius.
Há tempos não pensava em Corumbá. E, no entanto, hoje ela está de
novo em minha memória, anunciada como uma milonga de Borges… que
também há tempos não lia:
Venga
una historia de ayer Venha uma
história antiga
que
apreciarán los más lerdos; Que mesmo os
mais lerdos apreciarão;
el
destino no hace acuerdos o destino não
faz concessões
y
nadie se lo reproche e ninguém
o censura
ya
estoy viendo que esta noche Já vejo que esta
noite
vienen
del Sur los recuerdos. Vêm do Sul as
lembranças.
Na feira da cidade, desta que me recordo, as culturas se misturam. Sob as lonas azuis, laranjadas e amarelas das barracas - estufas multicoloridas -
vendem-se discos piratas de bandas brasileiras, bolivianas e
paraguaias. Cópias dos últimos lançamentos de Hollywood são
ofertadas com as vozes de Tom Cruise e Meryl Streep dubladas em
espanhol ou português. Os vendedores – de ambos lados da fronteira
– carregam em suas pochetes maços de reais, dólares e bolivianos
surrados, suados, comem chipa e salteñas. Bebem tereré.
As moscas circulam pousando sobre produtos e alimentos. Impossível
saber se são bolivianas ou brasileiras.
Percorrendo as vias entre as barracas vê-se, aqui e ali, televisões
ligadas, algumas sintonizadas na Rede Globo ou no SBT, outras em
algum canal boliviano; eventualmente ouve-se um aparelho transmitindo
a programação árabe da Al-Jazeera.
Vebdedores e compradores, sob o filtro azul, laranja e amarelo
das lonas, não se olham. O diálogo “Quanto custa?”; “Quinze
reais (ou quince reales)”, se dá com o dono da barraca
mantendo os olhos na TV e o consumidor segurando o produto, olhando
ao redor da loja. O pagamento ou a desistência da compra, parecido.
Um conta o dinheiro, o outro confere o troco. Um deixa o produto sobre a mesa improvisada e se vai; o outro rearruma as bugigangas expostas. Sem uma só troca de olhares.
A fronteira entre os homens, como a geográfica, é seca.
Os seres que habitam essa linha invisível no limite do familiar são quietos.
No limiar do território nacional, os homens têm, por vezes, traços
físicos comuns, transitam pelas mesmas ruas, comem nos mesmos
restaurantes, bebem nos mesmos bares, manuseiam o mesmo dinheiro, mas sabem que em algo
fundamental diferem.
De longe, os corumbaenses e os bolivianos reparam um nos outros, mas
quando essa distância diminui, os olhares se desviam. Tudo sem um
pio.
Agora, essa quietude não vem de almas tranquilas. Não.
Onde os países se encontram, o silêncio vem de uma eterna
desconfiança, do contato rotineiro com o estranho.
Nunca se sabe ao certo de que lado se está, quem está ao seu lado.
Ao falar com um homem ou uma mulher da fronteira, você nota que cada
frase é antecedida por um longo silêncio. Nessa pausa, em que lhe
miram de soslaio e depois olham para dentro de si próprios, quase é
possível ouvir a conversa interna que o fronteiriço tem consigo
mesmo: “O que ele quer comigo? Por que me dirige a palavra? Se eu
responder, o que ele irá pensar?”.
Então vem uma resposta curta, lacônica, que mais esconde que
revela. Estar perto desse outro revolve em nosso espírito uma
cautelosa inquietação.
O silêncio da fronteira é uma espera, uma ansiosa espera pelo
encontro inevitável com o que é estrangeiro. O silêncio é uma
defesa.
Na fronteira, não temos certeza se seremos compreendidos. Quem somos
é constantemente ameaçado pela incompreensão de quem nos é
estranho. Há na fronteira uma inquieta calma.
Há tempos não pensava em Corumbá, em seu calor insuportável, no
tempo em que vivi essa silenciosa ansiedade ao lado de bolivianos e corumbaenses. Há
quase dez anos me mudei de lá. Nunca mais voltei.
No entanto, outro dia fui a uma apresentação de músicos que
exploravam os ritmos da fronteira. Pela primeira vez em minha vida
ouvi uma milonga, com seus acordes graves e sua sonoridade quase
trágica. Pela primeira vez ouvi o ritmo que, por certo, imaginou
Borges ao escrever sua “Milonga de dos Hermanos”. Aquela música
que jamais eu ouvira, proporcionou-me um reencontro com o poema que
li pela primeira vez há tanto tempo. Esse poema, que até então
tinha apenas uma certa cadência de rimas, passou a ter uma melodia e
uma harmonia.
Nesse mesmo dia da milonga, ouvi também uma canção que me levou de
volta às ruas de Corumbá e aos olhares fronteiriços e silenciosos.
Senti mais uma vez, depois de dez anos, o calor debaixo das tendas e
quase pude ver a expressão de inquietude nos rostos daquelas pessoas
que, em silêncio, nunca chegaram a atravessar a fronteira seca que
nos separava.
Ao ouvir a canção, senti minha própria inquietude.
Esse texto é uma forma de agradecimento aos músicos que me
proporcionaram esses dois reencontros.
A letra, escrita por Victoria Saavedra e Mateus Porto dizia:
“me
veo asi…
me
veo pasando el tiempo en eterna ansiedad
cubriendo
el silencio com facilidad
disfarzando
el rostro de inquieta calma (…)
parece
que pasa el tiempo y nada va a pasar
esta
parsimonia y tal sobriedad
me
voy descubriendo em inquieta calma”.
Se
quiserem ouvir o que eu ouvi na voz de Thamires Tannous (a canção começa em 15:52):