Tive um grande
amigo chamado F., poeta.
F. pensava em
versos e vivia em versos.
O raciocínio desse
colega era mais apegado à rima, à métrica, ao som, à imagem, que à
lógica. Não que a lógica não estivesse em suas matutações.
Estava, mas ela era mais comedida, perambulava sem muito alarde, como
um garçom, servindo discretamente às figuras poéticas que
transitavam bem-arrumadas pelo salão do pensar desse antigo
companheiro.
Mantivemos a
amizade pelos quase cinco anos de graduação.
Quando nos
reuníamos em grupos de estudos para tentar entender os textos das
disciplinas do curso de Filosofia, pouco lhe importava o rigor da
reflexão, as premissas, as conclusões, a bibliografia, a correta
tradução dos termos… Não lhe importava sequer o filósofo, sua
contribuição para a História do Pensamento Ocidental ou o
comentador que sugeria esta ou aquela interpretação.
Agora, se no meio
das discussões brotava uma palavra, uma metáfora, uma rima, uma
metonímia, F. pedia que interrompêssemos a leitura para
apreciarmos, por mais tempo, aquele único verbete, aquela única
expressão, aquela única imagem.
- “Peraí…
isso aí é bonito. De onde será que ele (‘ele’ podia ser
Hegel, Nietzsche, Kant, Parmênides, podia ser Ruy Fausto,
Paulo Arantes, Bento Prado Júnior, Francis Wolff, etc) tirou
isso?” - F. suspeitava sempre da originalidade das ideias…
fossem de quem fossem… até de Sócrates já o ouvi duvidando.
- “Essa
coisa da caverna, meu amigo, devia ser um lugar-comum na Grécia, um
lugar cheio de buracos… Sócrates deve ter compilado
anedotas que circulavam pelas ruas de Atenas… O que não diminui
seus méritos, mas...”.
Enquanto os
trabalhos acadêmicos da classe - os meus, inclusive – esboçavam
pobres comentários sobre um ou dois capítulos desta ou daquela obra
filosófica, F. redigia páginas e páginas sobre uma única frase
pinçada de algum parágrafo pouco relevante do ponto de vista
acadêmico.
- “Sobre
todo o resto – até sobre isso aí que você escreveu – já foi
dito coisa demais” - justificava.
Entre uma tradução
correta, técnica, fiel ao original do texto aristotélico e uma
péssima tradução recheada de curiosas contradições e erros
“trágicos”, F. nunca hesitava em defender a segunda.
- “Vamos
aprender mais com esses erros peculiares, mas poéticos, que com
aqueles tediosos acertos”.
Líamos os mesmos
textos… mas a semelhança entre nossas experiências de leitura
acabava aí. Ao sentarmos na cantina da universidade para discutirmos
o que havíamos lido, percebia que F. não se lembrava dos
argumentos, de como o texto era construído, da sua estrutura, nada
disso… mas havia decorado, na íntegra, uma citação perdida numa
nota de rodapé inserida pelo tradutor. O que ficara gravado em sua memória era uma breve divagação sobre
como determinada palavra grega havia sido utilizada por algum outro
autor desconhecido, no mesmo período, em tal século antes de
Cristo.
Aquela palavra,
aquele uso específico e improvável da palavra – da língua morta
– o interessava.
O pensamento desse
amigo, suas reminiscências, estavam a serviço da poesia. E de pensar assim,
muito e amiúde, F. vivia em versos.
Agia, não pela
utilidade de seus atos, mas pela carga poética que portavam.
Nunca o vi entrar
numa biblioteca sabendo o que procurar. Passeava pelas prateleiras
como quem passeia por uma cidade estrangeira, querendo ser
surpreendido, querendo sentir o frescor de novos ares. Retirava ao
acaso um volume, folheava-o, lia alguns parágrafos e, desobedecendo
os cartazes de ordem, devolvia-o.
Interessava-se pelas prateleiras dos livros devolvidos: -"Veja só o que as pessoas andam lendo!"
Convidava-me a
andar pela biblioteca como quem convida um amigo a caminhar pela praça.
- “Tem um
livro que você precisa ler… eu o vi outro dia, estava por aqui,
mais ou menos nessa altura, ao lado de um livro de capa amarela”.
A biblioteca, para
F., não era um mero acervo, tornava-se uma geografia.
Um dia, enquanto
caminhávamos pelas mesas da biblioteca, F. encontrou uma volumosa
obra de contabilidade deixada sobre a mesa (como bem impunham os
cartazes). Deslizou o volume sobre tampo de fórmica em minha direção
e disse:
- “Se eu
passar o próximo ano da minha vida lendo e entendendo essas páginas,
talvez eu me torne uma pessoa útil para
a sociedade. E então, ao final desse ano, como tudo
que é útil, eu terei um preço”.
Em seguida,
erguendo um livro de Tolstoi ponderou:
- “Se eu
passar o próximo ano da minha vida lendo e entendendo profundamente
essas páginas eu não terei utilidade alguma, nem terei um preço…
mas talvez eu descubra algo sobre mim. E então, talvez, ao final de
um ano, eu compreenda um pouco melhor quem eu sou”.
E meteu Tolstoi
debaixo do braço.
Após nossa formatura, nunca mais o vi.
Talvez tenha chegado a alguma conclusão sobre si. Não sei.
Nesses tempos em
que as palavras são violentadas, distorcidas e menosprezadas; nesses
tempos em que as ações são movidas por discursos que surrupiam o
sentido dos termos; nesses tempos em que nos ocupamos mais em sermos
úteis, em termos um preço, nos furtando de buscar quem somos,
lembro-me de F. saindo da biblioteca com o livro de contos de Tolstoi
a tiracolo, num ato de lucidez e coragem.
F. sempre esteve
disposto a pagar o preço de ser fiel às palavras.
Antes de encerrar o
texto, deixo-lhes alguns versos de F.:
Minha mãe diz (ao
lavar a louça)
que o maior perigo
é esfregar
demais o alumínio
até que se veja
nele nosso
reflexo
(...)
F. faz falta.