Sobre
a mesa descansa o corte de um livro, duzentas e poucas, trezentas
páginas. Linhas retas, amareladas, finas, paralelas, enfileiradas.
Perto da lombada as horizontais fazem uma leve curva se encontrando;
parecem o cabelo alisado e alinhado de uma mulher de costas... uma
mulher de cabelos longos e cabeça quadrada. A lombada está virada
para a parede, não consigo identificar a obra. Não consigo
identificar a mulher de cabeça quadrada, ver sua cara.
As
folhas… os cabelos dessa mulher estão cobertos por um xale azul, a
capa do livro.
Sobre
a capa do livro, há uma multa de trânsito, não consigo ler o
título, ou o nome do autor.
Sobre
a multa, um outro livro, sobre o livro uma carta, sobre a carta,
folhas de xerox de algum texto, grampeado, sobre o xerox, uma nota
fiscal, sobre a nota fiscal, um CD, sobre o CD, um rolo de fita
crepe.
E
sobre tudo isso repousa a minha incapacidade de lembrar que livro é
aquele debaixo de tudo.
Não
me ocorre, mesmo agora, em 2019, profanar esse misterioso totem de
objetos aleatórios erigido ao longo de 2018, arrancando-lhe o
alicerce.
O
totem deve permanecer de pé.
Contemplo
o ajuntamento de coisas. São minhas coisas e não sei por que estão
desse jeito.
Bem,
eu sei que estão desse jeito. Eu sei que as fui empilhando
nos últimos doze meses. Eu sei que tinha um plano para elas. Mas não
sei por que acabaram com essa disposição específica.
O
rolo de fita crepe, que se equilibra na cimeira totêmica é algo
mais recente em minha memória. Usei-o dia desses para medir a
circunferência de um bastão de kung-fu. Estava sem fita métrica,
precisava de algo flexível para fazer as medições. Pensei mesmo em
calcular a medida pela fórmula matemática 2πR.
Eu tinha uma régua rígida, podia achar o raio; eu tinha pi – que
me foi confidenciado por um ancestral misticismo matemático –;
podia muito bem achar a circunferência.
Mas
entre a elegante abstração numérica e a rudimentar ação de
enrolar o objeto com uma fita, pareceu-me mais precisa e racional a
segunda opção. O toque, ponto a ponto, da fita crepe na
circunferência conferia mais certeza à operação. E eu precisava
de precisão. Não da precisão em casas decimais, metafísica, de
uma circunferência perfeita e inexistente, mas a precisão do toque
ao redor do perímetro da madeira. A força dos fatos, ainda que os
fatos sejam imprecisos, parece-me mais convincente que a razão
abstrata.
Eis
o ápice dessa estranha instalação sobre minha mesa. Eis a cabeça
do totem: os fatos.
Abaixo
do rolo de fita crepe, o CD… essa coisa espelhada onde é prensada
a música.
Vejam…
O lugar da letra é no papel, é o seu habitat.
Não
se trata de um dogma, como afirmam alguns em artigos simplistas sobre
o fim do livro impresso… são milênios de adaptação ao meio. Por
um longo processo de seleção natural, as palavras que nos chegaram
foram aquelas que se adaptaram ao papel, como os tentilhões de
Galápagos.
Machado
de Assis, Victor Hugo... chegaram a nós, dentre outras coisas,
porque se adaptaram à celulose.
Muitas
palavras escritas na areia, na argila, no tronco de árvores ou
gravadas na memória de algum ancestral, por certo se perderam.
Chegaram-nos hieroglifos, mas não o espírito das letras.
A
letra já aceitou o papiro, a pedra, aceita a tela do computador, do
tablet, mas a mídia da letra é, ainda, o papel. Nessa fibra
natural é que a palavra parece mais viva, mais adaptada. Pode ser
que isso venha a mudar, pode ser que uma nova espécie de palavra,
com vantagens competitivas mais adequadas ao meio digital, venha a
substituir aquelas que se multiplicaram ao longo dos séculos sobre o
papel, pode ser, mas por enquanto, não parece que haja algo melhor.
Essa
nova espécie ainda não surgiu. Ou talvez já tenha surgido, mas
esteja esperando mudanças mais drásticas no ambiente para que possa
se impor sobre as demais.
O
kung fu e o tai chi chuan, por exemplo, tem como habitat o corpo. Já
tentaram transmiti-los pela fala, pela escrita, por vídeos… mas o
kung fu e o tai chi nunca se adaptaram a essas mídias. A mídia
marcial é o corpo. Dentro de um mestre chinês podem ser
engarrafados mil anos de kung fu.
Por
milênios, as técnicas do bastão shaolin – esse que eu precisava
medir com a fita crepe para poder talhar um desenho em seu lenho –
foram transmitidas pela mímese do corpo, com um chinês se
espelhando no outro.
Agora,
para voltar ao totem sobre a minha mesa, qual o substrato da música?
O vinil? O CD? O pendrive? A nuvem? Nada disso parece ser o habitat
da música.
A
música no CD, num smartphone, é como um bicho engaiolado, um
flamingo numa piscina artificial, com suas penas desbotadas, uma onça
num cubo de concreto tendo de ouvir os guinchos estridentes de
excursões escolares.
O
lugar da música ainda é no instrumento, na voz.
Fui
a um show de Mateus Porto e pude ouvir milongas argentinas
reverberado no corpo do violão, na voz. Comprei o CD que está
abaixo do rolo de fita crepe. Capa amarela. Trouxe a música para
casa, presa no CD. Não é a mesma coisa.
O
bicho totêmico sobre minha mesa é feito também de aprisionamentos.
Sob
o CD há uma nota fiscal. É possível ver o quanto foi pago. Não é
possível saber em qual estabelecimento o dinheiro foi gasto. Pelo
valor, o que me vem à cabeça é um pão de queijo e um pingado,
consumidos há sete ou oito dias, após minha sessão de análise
semanal. Naquela manhã eu havia falado sobre um sonho… Eu sonhei
que alugara um apartamento. As paredes do prédio eram tão finas que
era possível ouvir minha vizinha tentando compor uma canção com o
violão.
A
vizinha era Adriana Calcanhoto… ela juntava os primeiros versos da
canção “Esquadros”, tentando encaixá-los na melodia.
Deitado
no divã, balbuciei umas estrofes. Por que Adriana Calcanhoto?
Lembrei
de quando fui ao show de lançamento do CD “Cantada”.
No
meio do palco, com um feixe de luz sobre si, Adriana contou a
primeira cantada que recebeu na vida… Disse que estava caminhando
pela calçada, indo para a escola, branquela, quase leitosa, de
uniforme e, encostado no muro, antes da entrada, havia um colega de
turma, da sua idade, negro, com a pele mais escura que já vira.
Recordou a cantora que, ao passar pelo amigo esse disparou:
- “E
aí? Vamos colocar o preto no branco?”
-
“Foi a melhor cantada que já recebi” - disse Adriana - “depois
que comecei a compor, sempre tento escrever canções que tenham a
força e a exatidão das palavras daquele menino”.
No
divã, sigo balbuciando a música “Esquadros”, penso na força e
na exatidão da cantada de Adriana, das canções, dos movimentos de
kung fu… penso que a exatidão e a força do kung fu não têm
relação com as exatidões e forças das histórias de Adriana
Calcanhoto.
-
“Justo você, que não é nem negro, nem branco, mas amarelo” -
concluiu o psicanalista, antes de encerrar minha falação.
Depois
da sessão, sentei numa padaria e pedi um pão de queijo – amarelo
– e um pingado – o preto no branco. Comi exatamente o que falara.
O
totem carrega essa autofagia.
Amparando
a nota fiscal dos doze reais gastos, umas quinze folhas de sulfite
grampeadas. Xerox de algum texto. Pelas frases soltas que consigo ler
nas beiradas do papel, noto que eram cópias de um conto de Donald
Barthelme: “O Balão”.
A
história absurda de um balão que se infla, infla, infla e vai
tomando conta da cidade, e o balão muda a paisagem de toda uma
metrópole, muda a relação dos habitantes com a geografia urbana.
Muda os acessos, as vias, os caminhos.
Tenho
pensamentos que são como esse balão fictício de Barthelme…
pensamentos sem muito sentido, desconectados de tudo o que existia
antes na paisagem da mente e que parece tomar conta da geografia do
espírito.
O
que aquele texto está fazendo ali? Comecei a ler Barthelme por causa
de uma entrevista de Susan Sontag… Sontag disse que estava lendo
John Updike e Barthelme… procurei textos deles. Achei pouca coisa
do primeiro, encantei-me pelo segundo.
Mas
li também uma apresentação de Updike sobre a “Metamorfose” de
Kafka.
Updike
parece desconfiar da maneira como lemos a metamorfose.
O
fato de Gregor Samsa acordar e olhar para os braços e ver patas
peludas e articuladas significa, realmente que houve uma
transmutação? - pergunta Updike.
Um
monstro que pensa sobre a própria monstruosidade, é um monstro? Um
monstro que quer continuar sua vida de caixeiro viajante, que quer
agradar a família, que quer agradar o chefe, que se preocupa, que se
angustia, perdeu, de fato sua humanidade?
E,
por outro, lado, Updike questiona… um homem que vive nas sombras,
nos recônditos do lar, do local de trabalho, da sociedade, um homem
que se esgueira, é ainda um homem?
Updike
sugere que o que há de mais humano em Gregor Samsa transparece na
sua perturbada relação com o corpo metamorfoseado. Sugere também
que o que há de mais animalesco no personagem, é a maneira como
vive, diariamente, sua humanidade.
O
totem… o monstro totêmico representa o que há de selvagem, ou o
que há de mais humano?
Updike
conta que uma das preocupações de Kafka ao editar o livro
“Metamorfose”, foi que o monstro não aparecesse na capa. Kafka
achava que a representação gráfica do monstro seria uma distração.
Foi
a única coisa que li de Updike. Gostei do nome do escritor, soa mais
como um codinome.
Por
baixo do texto de Donald Barthelme espia a ponta de uma carta. É uma
carta inacabada e não enviada. Escrevi-a para meu sobrinho, quando
ele tinha quatro anos, não consegui terminá-la, as coisas foram se
amontoando sobre ela e eu não conseguia dar um jeito de encerrar o
assunto com aquela criança de quatro anos. Ela ficou sobre minha
mesa, girando sobre outros papéis, sobre outros assuntos inacabados.
Hoje meu sobrinho já tem seis anos. A carta sobre a mesa não é
mais para ele. É para uma criança que não existe mais. E como a
criança não existe, não sei como acabar a carta.
De
certa forma, o personagem que inventei para falar com meu sobrinho de
quatro anos, ficou sem ter com quem falar.
Não
consigo reciclar nem quem eu sou, nem o sobrinho que imaginei, nem a
carta.
Tive
um amigo que, certa vez, concluiu que a cidade não tinha cestos de
lixo de coleta seletiva (orgânicos e recicláveis) suficientes.
Como
forma de protesto e conscientização, esse colega ia colocando seus
restos nos bolsos das calças e do casaco, deles se livrando somente
quando encontrasse uma lixeira que atendesse o requisito da
seletividade.
Carregava
consigo cascas de banana, miolos de maçãs mordidas enrolados em
guardanapos, copos plásticos de café, papéis de bala, recibos,
para cima e para baixo, e só caminhava a pé.
Cheguei
a vê-lo colocar no bolso um… não, deixa pra lá que isso não
acrescenta em nada a história.
Se
combinávamos de nos encontrar num boteco, ele já chegava com os
bolsos carregados.
Os
lixos do café se acrescentavam aos demais e saíamos caminhando para
nosso destino, uma livraria, um museu, outro café.
Às
vezes, na rua mesmo, ou em algum estabelecimento comercial, parávamos
diante de uma lixeira comum e eu dizia: "Larga esses lixos aí.
Isso aí na tua frente é uma lixeira".
- "Não.
Essa não é uma lixeira seletiva. Se eu jogar tudo aqui, misturado,
algum ser humano vai ter que separar o que é reciclável do que é
lixo orgânico. Parte do que é reciclável talvez deixe de ser
reaproveitável. Isso é uma falta de respeito com quem quer que
trabalhe na reciclagem do lixo da cidade".
“Eu
prefiro fazer de meus bolsos uma lixeira temporária a tornar-me uma
lixeira não seletiva – como essas da cidade –, que não consegue
nem distinguir no outro o que é humano... a tratar outro ser humano
como lixo”.
Era
um protesto sem palavras de ordem, sem público, diante da própria
perplexidade pela falta de lixeiras, pela falta de consciência.
Era
um protesto diante do lixo que nos tornávamos, dia a dia, sem
lixeiras de coleta seletiva.
Esse
meu amigo teria gostado das considerações de Updike sobre Kafka. Ele conseguia
ver nossa monstruosidade, disfarçada sob nossas pequenas ações
humanas.
Abaixo
da carta vejo a lombada de um livro. “Trabalhadores do Mar”, de
Vitor Hugo, traduzido por Machado de Assis. Há meses peguei esse
livro, na esperança de relê-lo. Na última vez que o visitara eu
era ainda adolescente. Queria lembrar da passagem em que o
personagem, Gilliatt, briga com um monstro desconhecido submerso no
mar. Machado de Assis decidiu não traduzir o nome do bicho que em
francês era “pieuvre”.
Como
eu não sabia francês, o monstro marinho tornava-se mais
desconhecido, mais pavoroso. Nem sabia como ler aquela palavra não
traduzida. Em minha cabeça, imaginava que a palavra devia ser
pronunciada “piãve”.
A
primeira palavra que disse em minha vida foi “Puave”… minha
versão fonética para o objeto chave.
Ponderei
isso no divã, outro dia.
A
chave era esse objeto misterioso, sem sentido, que as pessoas grandes
carregavam para lá e para cá, escondido em bolsos e bolsas e
largavam sobre as mesas quando chegavam em casa. “Puave”. Era o
símbolo de um mundo que eu não conhecia, o mundo de adultos que
carregavam aqueles objetos sem sentido.
Eu
não tinha uma chave.
Como
no livro “Trabalhadores do Mar” eu não sabia a tradução para a
palavra “Puave”.
Palavras
desconhecidas para objetos misteriosos.
-
“Numa nota mais gastronômica… ‘poivre’, em francês,
significa pimenta, uma especiaria trazida do oriente”… concluiu o
analista, como se a miscelânea de palavras “pieuvre”,
“puave” e “poivre” tivessem alguma relação com minha
ascendência oriental, com minhas origens.
O
livro de Victor Hugo, traduzido pelo bruxo do Cosme Velho, cobria uma
multa de trânsito.
Motivo:
“Desobedecer ordens de autoridade de trânsito”. Infração
grave. Penalidade de multa. A multa tem já quase um ano, está paga,
mas guardei-a. Pelo documento, pelo texto.
Eu
sou um cumpridor da lei.
Estava
há um ano com minha licença para dirigir motocicletas. No caminho
para o trabalho, ao meio-dia, sob o sol do Cerrado, o asfalto parecia
evaporar. Uma das pistas estava interditada. Obras. As máquinas
desligadas. Homens faziam a siesta debaixo de um pé de manga.
Minha pista parecia liberada. Segui meu rumo. Ao passar pelo pé de
manga ouvi um grito: “Ei!”. Segui meu rumo.
Duas
semanas depois, na caixa de correios de casa, a notificação por
“Desobedecer ordens de autoridade de trânsito”.
- “Ei” - disse a autoridade sob o pé de manga.
Esse
louco jogo de significados que se distorcem no calor do Cerrado.
Perto
da base de meu totem, há, portanto, uma infração. Uma punição
por ter violado as ordens de uma autoridade.
Abaixo
da antiga multa o corte do livro, que me vira as costas, com os
cabelos retos cobertos por um xale azul.
Que
livro é esse, que há tanto eu planejava ler? Não sei.
Todas
essas coisas… Separadas, são trecos.
Juntas,
um totem… que parece ter alma. Que olha numa certa direção, mas
olha para além do que consigo enxergar… e o que o totem vê é tão
fascinante, ou tão apavorador, que ele sequer consegue se mover, nem
pisca, mantém os olhos arregalados.
Eu
olho o totem e posso apenas imaginar o que ele enxerga.
Feliz
ano novo.