Semana passada foi lançado, pela Editora Penalux, no Museu da Imagem
e do Som – MIS, em Campo Grande/MS, o livro de contos chamado
“Desejo Sitiado” de Flávio Adriano Nantes, professor do
Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
São vinte contos distribuídos por 116 páginas.
De tudo, de tudo, chama atenção do leitor o duplo sentido que o
adjetivo “sitiado” ganha ao longo das histórias.
É sobre esses sítios que lhes quero falar.
É sobre esses sítios que lhes quero falar.
De início, apreende-se o significado mais evidente da palavra
“sitiado”. Quem vai deambulando pelos parágrafos tem a clara
impressão de que as narrativas tratam de desejos vividos em estado
de cerco: desejos por isso mesmo mal vividos ou, talvez, não vividos.
Explico:
No Estado de Sítio – nesse instituto jurídico previsto na
Constituição da República Federativa do Brasil – direitos,
liberdades individuais e garantias fundamentais são suspensos.
Instala-se uma situação em que o Poder Legislativo, que cria a Lei,
e o Judiciário, que interpreta a Lei e, de acordo com ela, julga,
são suspensos e submetidos ao Poder Executivo, que pode atuar apesar
da Lei.
O Estado de Sítio, então, de maneira radical e impositiva, suspende
uma ordem estabelecida, suspende uma ordem que (até certo ponto)
garante a liberdade dos indivíduos, suspende a multiplicidade de
vozes, suspende as diferentes fontes normativas, os diferentes focos
de poder.
Agora, curiosamente, o Estado de Sítio, para poder colocar em
suspensão essas liberdades, garantias e direitos instituídos,
precisa estar diante de uma desordem, de uma ameaça de tal
magnitude, que justifique a suspensão de uma ordem livre em
favor de uma ordem opressora.
Há um certo sadismo no Estado de Sítio: tiro-lhe o direito, para lhe garantir o direito!
O Estado deixa de ser um zelador da liberdade dos indivíduos para
tornar-se o vigilante de suas liberdades. Há uma diferença entre zelar
pela liberdade e vigiar a liberdade de uma pessoa.
Para usar a metáfora hobbesiana do Leviatã, no Estado de Sítio,
cada corpúsculo que compõe o grande corpo do Leviatã está privado
de uma parcela de sua liberdade, de sua ordem, de seus desejos, em função dos
desejos desse outro corpo, dessa outra ordem, capaz de nos proteger da ameaça de um
estado de irracionalidade, de um estado de
anormalidade.
O livro de Flávio Adriano Nantes traz uma coletânea de histórias
em que os desejos dos indivíduos encontram-se em Estado de Sítio. As narrativas mostram personagens que deambulam e tropeçam nessa zona
cinzenta que se instaura entre o zelo e a vigilância, nesse lugar em
que a liberdade está suspensa, submetida a uma outra ordem. Cada
conto nos chama a atenção para como, por vezes, passamos de um
estado a outro sem perceber; e como podemos viver achando que estamos
sendo cuidados quando, na verdade, estamos apenas sendo vigiados.
Os contos dessa obra indicam ao leitor como um desejo sitiado é um desejo
que se submete à opressão, é um desejo que cede suas garantias e
liberdades porque supõe uma ameaça tão grande que abre mão de
fazer suas próprias leis e interpretar suas normas e criar sua
cidadania e inventar sua própria dignidade.
São contos hobbesianos. Não sob o ponto de vista do Leviatã, mas
dos corpúsculos que o compõem.
Os personagens de Flávio nos mostram que um desejo em Estado de
Sítio implica um corpo sitiado. Implica um corpo com medo, ameaçado,
sujeito a um temor que demanda um estado de exceção.
Em cada um dos contos do livro o desejo se torna carne e esse
desejo ancorado no corpo é sistematicamente mortificado.
Agora, é preciso lembrar que a figura jurídica do Estado de Sítio,
na Constituição Brasileira, tem prazo determinado. Expira. Isso
porque quem redigiu a Constituição sabia que essa situação é
extremamente traumática para a democracia, para uma vida
republicana, para as liberdades, para o próprio direito, para os
corpos dos cidadãos.
Nos textos de Flávio, o cerco não tem fim.
Os corpos sitiados do livro são corpos cansados de não serem
livres, cansados de não estarem protegidos, cansados de serem
vigiados, de não terem garantias, de não viver e não criar as
próprias leis.
De pouco em pouco, quando o sítio dura uma vida, Flávio nos faz
refletir que um corpo constantemente privado de seus direitos e
garantias desaprende a lidar com a liberdade, com os prazeres e
consequências que decorrem de ser um corpo e de ter um desejo livre.
Um corpo sitiado desaprende a diferença entre ser cuidado e ser
vigiado.
Um corpo sitiado torna-se uma prisão, uma prisão onde se encarcera
o desejo.
Esse é o mal-estar que os contos de Flávio criam no leitor do
“Desejo Sitiado”.
Só que cada um dos contos também nos mostra que o desejo, ainda que
privado de seu espaço, ainda que tolhido, amputado, tenta achar um
corpo que o tire do estado de sítio. Ele busca se realizar onde quer
que seja, como lhe seja possível, seja em outros corpos, seja em
vestígios de corpos, pois já não tem o seu próprio.
As narrativas de Flávio nos levam por esse perambular, por esse
deambular do desejo sitiado em busca de um espaço, de um outro
corpo. Os contos nos mostram que o desejo, privado de sua morada, se
hospeda em restos, em ruínas, em rastros de corpos, em substitutos
imperfeitos de corpos, em cheiros, em digitais, em retratos, na
poesia, nas letras, em livros desordenados pelo cômodo, numa
escultura, numa canção, numa taça de vinho.
Um corpo que não pode ser livre inventa uma liberdade, por mais
frágil e pálido que seja o protótipo, o simulacro. "Me conta
uma história", pede mais de um personagem desse desejo sitiado.
Acompanhando os personagens de Flávio, nos damos conta de que quem
vive um desejo sitiado, muitas vezes, precisa se contentar com esses
vestígios de corpo: Dois dedos de vinho num copo abandonado, em
lugar da presença de quem partiu; um leve toque nos ombros, com a
ponta dos dedos, no lugar de um beijo público, explícito; um poema
em francês escrito à lápis, perdido no bolso do casaco, no lugar
de um romance; filmes, poetas, poetizas, pintores, pintoras, versos,
no lugar da intimidade, um autorretrato na parede.
O estado de sítio de nossos corpos, de nossos desejos, nos torna
mendigos de liberdade, de garantias, de direitos, de cidadania, de
dignidade.
A tal ponto o desejo sitiado é reduzido nos contos de Flávio que
logo algo cotidiano como o amor torna-se surreal, como um quadro de
Salvador Dalí, fragmentado como as cores de Miró, uma mistura
indecifrável como calda de sorvete.
Há uma claustrofobia ao se ler o “Desejo Sitiado”.
Agora, a palavra “sitiado” também tem um outro significado,
menos evidente, que permeia toda a obra.
“Sitiado” também significa, nesses contos, um desejo fixado no
sítio. Qual sítio?
O sítio dos avós de Flávio – o personagem, não o autor. O sítio
que aparece num pesadelo repetido. O sítio que tem um rio na
entrada, um rio em que Flávio cai repetidamente, para então
acordar.
Que desejo é esse que se assenta num sítio?
Há um conto em que se narra esse sonho repetido. É o único momento,
de toda a obra, em que os termos “vigilância” e “proteção”
são postos no mesmo campo semântico, usados quase como sinônimos.
É um momento em que as palavras “sonho” e “pesadelo” são
usadas de maneira equivalente.
Nesse momento do livro, de confusão conceitual, no sítio dos avós,
em que a vigilância do corpo e a proteção do corpo são tomados
como similares, em que o cerceamento de direito e garantia de direito
são confundidos, Flávio nos chama atenção para que não deixemos
que o cuidado e o zelo por um corpo se confunda com a vigilância
desse corpo.
Flávio nos diz que é preciso acordar desse estado de sítio, não
deixar que a vigilância sobre nossa liberdade, sobre nossos desejos
se normalize. É preciso se jogar no rio, é preciso acordar, é
preciso passar da vigia para a vigília.
A queda no rio é um despertar.
Esse chamado permeia todos os contos, pois os personagens, ao mesmo
tempo em que se encontram sitiados, ao mesmo tempo em que têm seus
corpos e desejos sob vigilância, vacilam, por um instante parecem apegados ao próprio cerco de seus desejos; são corpos e desejos que
de tanto terem suas leis, liberdades e garantias cerceados, de tanto
terem que deambular em busca de restos de corpos, acabam sobrevivendo
nesse espaço em que a vigilância é tomada por zelo.
As narrativas de Flávio precisam ser lidas também desde o sonho do
sítio. Um sonho do qual é preciso despertar. Um despertar político
que diz: cerceamento e vigilância não são liberdades, não
constituem cuidado.
O sonho do sítio coloca em questão o Estado de Sítio a que os
personagens do livro estão submetidos. O sonho-pesadelo de Flávio
permite que o leitor levante questões aos corpos e aos desejos
sitiados por tanto tempo: E se esse desejo deixar de ser sitiado? E
se esse desejo for livre e puder fazer suas próprias leis e puder
interpretar suas próprias leis? E se esse desejo puder se jogar?
E se esse corpo despertar? E se não tiver mais medo?
E se esses desejos múltiplos não mais se submeterem ao desejo de um
Leviatã?
E se o termômetro e se essa a medida do desejo e do corpo se quebrar
e se transformar em mil gotas de mercúrio, o que cada gota irá
medir?
Um corpo, quase ao final do livro, responde: “Os desejos que
lançarem sobre mim serão frustrados. Mas esse sou eu... A partir de
amanhã quero ser tratado no feminino, mas meu nome permanece o mesmo
e não vou tirar a barba”.