28 de outubro de 2019

Sítios


     Semana passada foi lançado, pela Editora Penalux, no Museu da Imagem e do Som – MIS, em Campo Grande/MS, o livro de contos chamado “Desejo Sitiado” de Flávio Adriano Nantes, professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

     São vinte contos distribuídos por 116 páginas.

     De tudo, de tudo, chama atenção do leitor o duplo sentido que o adjetivo “sitiado” ganha ao longo das histórias.

      É sobre esses sítios que lhes quero falar.

     De início, apreende-se o significado mais evidente da palavra “sitiado”. Quem vai deambulando pelos parágrafos tem a clara impressão de que as narrativas tratam de desejos vividos em estado de cerco: desejos por isso mesmo mal vividos ou, talvez, não vividos. Explico:

     No Estado de Sítio – nesse instituto jurídico previsto na Constituição da República Federativa do Brasil – direitos, liberdades individuais e garantias fundamentais são suspensos. Instala-se uma situação em que o Poder Legislativo, que cria a Lei, e o Judiciário, que interpreta a Lei e, de acordo com ela, julga, são suspensos e submetidos ao Poder Executivo, que pode atuar apesar da Lei.

     O Estado de Sítio, então, de maneira radical e impositiva, suspende uma ordem estabelecida, suspende uma ordem que (até certo ponto) garante a liberdade dos indivíduos, suspende a multiplicidade de vozes, suspende as diferentes fontes normativas, os diferentes focos de poder.

     Agora, curiosamente, o Estado de Sítio, para poder colocar em suspensão essas liberdades, garantias e direitos instituídos, precisa estar diante de uma desordem, de uma ameaça de tal magnitude, que justifique a suspensão de uma ordem livre em favor de uma ordem opressora.

      Há um certo sadismo no Estado de Sítio: tiro-lhe o direito, para lhe garantir o direito!

     O Estado deixa de ser um zelador da liberdade dos indivíduos para tornar-se o vigilante de suas liberdades. Há uma diferença entre zelar pela liberdade e vigiar a liberdade de uma pessoa.

     Para usar a metáfora hobbesiana do Leviatã, no Estado de Sítio, cada corpúsculo que compõe o grande corpo do Leviatã está privado de uma parcela de sua liberdade, de sua ordem, de seus desejos, em função dos desejos desse outro corpo, dessa outra ordem, capaz de nos proteger da ameaça de um estado de irracionalidade, de um estado de anormalidade.

     O livro de Flávio Adriano Nantes traz uma coletânea de histórias em que os desejos dos indivíduos encontram-se em Estado de Sítio. As narrativas mostram personagens que deambulam e tropeçam nessa zona cinzenta que se instaura entre o zelo e a vigilância, nesse lugar em que a liberdade está suspensa, submetida a uma outra ordem. Cada conto nos chama a atenção para como, por vezes, passamos de um estado a outro sem perceber; e como podemos viver achando que estamos sendo cuidados quando, na verdade, estamos apenas sendo vigiados.

     Os contos dessa obra indicam ao leitor como um desejo sitiado é um desejo que se submete à opressão, é um desejo que cede suas garantias e liberdades porque supõe uma ameaça tão grande que abre mão de fazer suas próprias leis e interpretar suas normas e criar sua cidadania e inventar sua própria dignidade.

     São contos hobbesianos. Não sob o ponto de vista do Leviatã, mas dos corpúsculos que o compõem.



     Os personagens de Flávio nos mostram que um desejo em Estado de Sítio implica um corpo sitiado. Implica um corpo com medo, ameaçado, sujeito a um temor que demanda um estado de exceção.

     Em cada um dos contos do livro o desejo se torna carne e esse desejo ancorado no corpo é sistematicamente mortificado.

     Agora, é preciso lembrar que a figura jurídica do Estado de Sítio, na Constituição Brasileira, tem prazo determinado. Expira. Isso porque quem redigiu a Constituição sabia que essa situação é extremamente traumática para a democracia, para uma vida republicana, para as liberdades, para o próprio direito, para os corpos dos cidadãos.

     Nos textos de Flávio, o cerco não tem fim.

     Os corpos sitiados do livro são corpos cansados de não serem livres, cansados de não estarem protegidos, cansados de serem vigiados, de não terem garantias, de não viver e não criar as próprias leis.

     De pouco em pouco, quando o sítio dura uma vida, Flávio nos faz refletir que um corpo constantemente privado de seus direitos e garantias desaprende a lidar com a liberdade, com os prazeres e consequências que decorrem de ser um corpo e de ter um desejo livre.

     Um corpo sitiado desaprende a diferença entre ser cuidado e ser vigiado.

     Um corpo sitiado torna-se uma prisão, uma prisão onde se encarcera o desejo.

     Esse é o mal-estar que os contos de Flávio criam no leitor do “Desejo Sitiado”.

     Só que cada um dos contos também nos mostra que o desejo, ainda que privado de seu espaço, ainda que tolhido, amputado, tenta achar um corpo que o tire do estado de sítio. Ele busca se realizar onde quer que seja, como lhe seja possível, seja em outros corpos, seja em vestígios de corpos, pois já não tem o seu próprio.

     As narrativas de Flávio nos levam por esse perambular, por esse deambular do desejo sitiado em busca de um espaço, de um outro corpo. Os contos nos mostram que o desejo, privado de sua morada, se hospeda em restos, em ruínas, em rastros de corpos, em substitutos imperfeitos de corpos, em cheiros, em digitais, em retratos, na poesia, nas letras, em livros desordenados pelo cômodo, numa escultura, numa canção, numa taça de vinho.

     Um corpo que não pode ser livre inventa uma liberdade, por mais frágil e pálido que seja o protótipo, o simulacro. "Me conta uma história", pede mais de um personagem desse desejo sitiado.

     Acompanhando os personagens de Flávio, nos damos conta de que quem vive um desejo sitiado, muitas vezes, precisa se contentar com esses vestígios de corpo: Dois dedos de vinho num copo abandonado, em lugar da presença de quem partiu; um leve toque nos ombros, com a ponta dos dedos, no lugar de um beijo público, explícito; um poema em francês escrito à lápis, perdido no bolso do casaco, no lugar de um romance; filmes, poetas, poetizas, pintores, pintoras, versos, no lugar da intimidade, um autorretrato na parede.

     O estado de sítio de nossos corpos, de nossos desejos, nos torna mendigos de liberdade, de garantias, de direitos, de cidadania, de dignidade.

     A tal ponto o desejo sitiado é reduzido nos contos de Flávio que logo algo cotidiano como o amor torna-se surreal, como um quadro de Salvador Dalí, fragmentado como as cores de Miró, uma mistura indecifrável como calda de sorvete.

     Há uma claustrofobia ao se ler o “Desejo Sitiado”.

     Agora, a palavra “sitiado” também tem um outro significado, menos evidente, que permeia toda a obra.

     “Sitiado” também significa, nesses contos, um desejo fixado no sítio. Qual sítio?

     O sítio dos avós de Flávio – o personagem, não o autor. O sítio que aparece num pesadelo repetido. O sítio que tem um rio na entrada, um rio em que Flávio cai repetidamente, para então acordar.

     Que desejo é esse que se assenta num sítio?

     Há um conto em que se narra esse sonho repetido. É o único momento, de toda a obra, em que os termos “vigilância” e “proteção” são postos no mesmo campo semântico, usados quase como sinônimos. É um momento em que as palavras “sonho” e “pesadelo” são usadas de maneira equivalente.

     Nesse momento do livro, de confusão conceitual, no sítio dos avós, em que a vigilância do corpo e a proteção do corpo são tomados como similares, em que o cerceamento de direito e garantia de direito são confundidos, Flávio nos chama atenção para que não deixemos que o cuidado e o zelo por um corpo se confunda com a vigilância desse corpo.

     Flávio nos diz que é preciso acordar desse estado de sítio, não deixar que a vigilância sobre nossa liberdade, sobre nossos desejos se normalize. É preciso se jogar no rio, é preciso acordar, é preciso passar da vigia para a vigília.

     A queda no rio é um despertar.

     Esse chamado permeia todos os contos, pois os personagens, ao mesmo tempo em que se encontram sitiados, ao mesmo tempo em que têm seus corpos e desejos sob vigilância, vacilam, por um instante parecem apegados ao próprio cerco de seus desejos; são corpos e desejos que de tanto terem suas leis, liberdades e garantias cerceados, de tanto terem que deambular em busca de restos de corpos, acabam sobrevivendo nesse espaço em que a vigilância é tomada por zelo.

     As narrativas de Flávio precisam ser lidas também desde o sonho do sítio. Um sonho do qual é preciso despertar. Um despertar político que diz: cerceamento e vigilância não são liberdades, não constituem cuidado.

     O sonho do sítio coloca em questão o Estado de Sítio a que os personagens do livro estão submetidos. O sonho-pesadelo de Flávio permite que o leitor levante questões aos corpos e aos desejos sitiados por tanto tempo: E se esse desejo deixar de ser sitiado? E se esse desejo for livre e puder fazer suas próprias leis e puder interpretar suas próprias leis? E se esse desejo puder se jogar?

     E se esse corpo despertar? E se não tiver mais medo?

     E se esses desejos múltiplos não mais se submeterem ao desejo de um Leviatã?

     E se o termômetro e se essa a medida do desejo e do corpo se quebrar e se transformar em mil gotas de mercúrio, o que cada gota irá medir?

     Um corpo, quase ao final do livro, responde: “Os desejos que lançarem sobre mim serão frustrados. Mas esse sou eu... A partir de amanhã quero ser tratado no feminino, mas meu nome permanece o mesmo e não vou tirar a barba”.