2 de outubro de 2019

Uma Ética Possível


     "Minha mãe e outras mulheres" é um livro de ética, não de uma ética ideal, mas de uma ética possível, a ética que dá para lançar mão diante de uma realidade particular, imprevista, desregrada... degradada. O livro é, então, uma coleção de notas antropológicas ou etnográficas, descrições de comportamentos de homens, mulheres, velhos, crianças em situações em que nos perguntamos... o que fazer? O que fazer diante da morte, da violência, da falta de direitos, de um pensamento totalitário?

     Só que essas descrições de indivíduos e gentes diante de situações que lhes impelem a agir, ou a não agir não podem ser apenas apontadas... com a frieza do cientificismo, não.
     As cenas precisam ser revividas para que o leitor possa sentir o peso ético da escolha dos personagens. O leitor precisa sentir a mulher tornando-se objeto de desejo, precisa testemunhar o homem pobre sendo roubado do pouco que possui mediante a conivência da Justiça. O leitor precisa sentir, para que possa compreender o peso das escolhas éticas dos personagens. Então o livro ganha a forma de contos e poemas.

     Nos dias de hoje, em que a obra literária deve se encaixar em um gênero específico, para um leitor específico, que busca na prateleira específica da livraria uma experiência de leitura já antecipada, "Minha mãe e outras mulheres" é um "não-livro".

     Agora, para a época em que vivemos, em que é negado a cada indivíduo viver seu gênero específico, em que são desconsiderados aqueles que pensam diferente e vivem diferente. Nessa época em que a exclusão do outro é legitimada e regulamentada pelas instituições, precisamos buscar uma nova ética, a ética do indivíduo diante da intolerância, diante da exclusão do outro, diante da tirania.

     Nessa época, o não-livro Minha mãe e outras mulheres talvez seja imprescindível. Talvez não tenha uma prateleira que o acolha nas livrarias, justamente por ser uma obra contra o emprateleiramento do pensamento e das ações dos homens.

     Cada conto e cada poema de Minha mãe e outras mulheres trata de uma ética possível diante de imposições que violentam o indivíduo. É um livro que descreve como o indivíduo pode fazer justiça não perante o mundo ou perante a sociedade que o violenta e o desumaniza, mas perante a si, perante o tribunal de seu caráter.

     Fabiano Costa Coelho, nos mostra, a cada conto, de que modo tanto a lei quanto a sua falta podem ser tirânicas. 

     A lei dos costumes, da tradição, levam os personagens ao ponto de perderem a liberdade, a autonomia sobre suas ações, a dignidade. Diante da tirania de um pensamento canônico, do abandono estatal na luta pela terra, do preconceito, da violência não punível porque resguardada pela conivência, diante da tirania imposta pela incapacidade de amar, diante da morte, Fabiano nos mostra os personagens arqueando sob o peso das circunstâncias.

     Mas esses personagens sobrevivem, suportam,  superam as situações narradas, não porque sucumbem à tirania da lei ou de sua falta, mas porque descobrem, desvendam e discernem o próprio caráter. São personagens que entendem quem são e, por isso, podem mudar até mesmo o nada a que foram reduzidos.

     Peço licença para refletir um pouco sobre o conto que me chamou a atenção para o caráter ético de "Minha mãe e outras mulheres".

     O conto "Medalha" tocou-me, pois sempre tive uma certa aversão à matemática. A repulsa não era aos números em si, incomodava-me a tirania do raciocínio que manejava os numerais.

     Gostava das harmonias da matemática, de suas exatidões, mas não suportava seu código de conduta.

       Ocorre que da repulsa moral segue-se o afastamento físico. Distanciei-me dos números.

     Distante, nunca me permiti entender essa disciplina... seus meandros, as razões que a levaram a se tornar essa criatura tirana, incapaz de incluir um pouco de vida em seus cálculos.

      Até que li esse tratado de ética matemática, de quatro páginas, de Fabiano Costa Coelho, intitulado "Medalha".

     Nele, explica-se porque essa ciência tornou-se tão avessa às pessoas que, como eu, supõem ter uma alma.

      Vão me dizer: "Mas quatro páginas? Não lhe parece pouco?"

     Lembrem-se, que o tratado é de ética matemática... ou seja, suas afirmações e argumentos são enxutos como axiomas, ou como as linhas de uma equação.

      Voltando à ética... Fabiano nos explica porque a matemática tornou-se tirânica.

      Houve, de início, como em geral ocorre nas tiranias, um extermínio.

     Essa limpeza do pensamento matemático é a premissa maior do tratado escrito por Fabiano Costa Coelho:

     "(...) morreram os poetas da matemática.   Ficaram os matemáticos eficientes, argutos e disciplinados".

     Com o extermínio ou exílio dos poetas do território matemático, os números perderam a volúpia, a sensualidade, os vícios, as paixões... tornou-se um terreno árido, sem alma e sem caráter.

     Eis a premissa menor do tratado ético-matemático de Fabiano Costa Coelho.

     "A matemática não tem a ver com o caráter das pessoas".
     
     Uma matemática sem caráter e sem alma torna-se uma ciência sem ética. Fabiano nos mostra como os matemáticos, diante de uma ciência que perdeu sua ética, supõem que essa falta é, em si mesma, uma ética.

     O conto mostra que o pensamento que perde o caráter impõe um pensar sem ética.

     Diante desse pensar que, aos poucos, sem balizas, torna-se tirânico, o que fazer?

     O personagem, que ainda se questiona quanto ao seu agir, diminuto e impotente, reflete:

     "Não cabe a mim mais que estudar os números".


     A saída encontrada parece ser viver o deserto da matemática em sua esterilidade, sem a poesia de outrora, mas sem sucumbir à ética tirânica.


    Lendo este conto, descobri que eu não suportei vivenciar a realidade a que foram reduzidos os números. Recolhi-me nas palavras.

     A pergunta que fica dos contos de "Minha mãe e outras mulheres" é a seguinte: o caráter, essa coisa forjada na poesia, na poiesis, no fazer, não é ele mesmo uma outra forma de tirania?