Neste ano de 2021, pela primeira vez em minha vida, tive contato com professores e alunos de filosofia do ensino médio de Portugal.
Apesar da proximidade cultural, histórica e linguística, eu nunca
havia lido ou ouvido nada sobre a filosofia produzida ou ensinada no
país ibérico.
Ponto curioso desse diálogo foi uma dúvida recorrente dos professores portugueses que pode ser colocada nos seguintes termos: “Ouvimos dizer que aí no Brasil o estudo da Filosofia é preponderantemente o estudo da História da Filosofia. Isso é verdade?”.
A cada vez que me colocavam essa questão eu pensava um pouco perplexo: “Preponderantemente”? Como assim?
Isso porque, para mim, Filosofia e História da Filosofia são indissociáveis, se não sinônimos. Para mim toda Filosofia sempre foi História da Filosofia.
Essa pergunta pela preponderância, formulada pelos professores lusitanos, sugeria que haveria uma outra forma de fazer Filosofia, para além da História da Filosofia. Isso me soava estranho. Tinha dificuldade em imaginar o que aqueles professores estavam querendo dizer… o que afinal de contas era, para eles, a Filosofia.
Que tipo de aula é essa em que não se estuda a História da Filosofia? Eu não conseguia sequer supor o que discutiam os portugueses numa classe de ensino médio na disciplina de Filosofia.
Quando o professor Elington Souza, da Escola Secundária Dom Manuel Martins, em Setúbal, pediu-me para falar sobre bullying e gênero aos seus alunos secundaristas, na disciplina de Filosofia, fiquei extremamente constrangido. Porque realmente não sabia o que propor, nem como abordar tais assuntos de uma perspectiva “filosófica”.
Mesmo tendo aceitado o convite, tinha a sensação de que não saberia o que falar com esses adolescentes. Reuni-me algumas vezes com o professor Elington para tentar entender o que exatamente queria que transmitisse aos seus alunos. Elington tentou acalmar-me dizendo que seria mais uma conversa com os alunos e menos uma exposição acadêmica de um texto sobre o tema.
Isso me deixou ainda mais confuso, porque a vida inteira meu contato com a filosofia tinha sido algo acadêmico e expositivo, calcado em textos. Tinha a sensação de que, o que quer que viesse a discutir ali, não seria Filosofia. Fiquei com a impressão de que eu estaria enganando os alunos do professor Elington por uma hora.
Ao final, fizemos as conversas com os alunos. Debatemos os temas. E eu saí da experiência, mais confuso que entrei, sem saber exatamente o que era a Filosofia para os portugueses. Sem saber se tinha contribuido com algo para a disciplina de filosofia cursada pelos alunos da Escola Dom Manuel Martins.
Há algumas semanas, numa continuação de diálogo com a Filosofia secundarista lusitana, chegou-me pelos Correios o livro “Entre o Prazer e o Dever”, escrito pelo amigo e professor de Filosofia na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, no Município de Portimão, Carlos Alberto Café.
Trata-se de um livro de apresentação da Filosofia Kantiana aos alunos do ensino médio em Portugal.
Lendo a obra, comecei, pela primeira vez, a ter alguma noção um pouco mais textual de como, afinal de contas, a filosofia é apresentada aos estudantes secundaristas lusitanos. E de fato, não se trata de História da Filosofia, nem de leitura estruturalista dos textos. É algo diferente.
Se no Brasil o acesso à Filosofia se dá por meio dos textos, analisando-se a História do pensamento ocidental, então é justo dizer que há, aqui nos trópicos, uma primazia do contato direto com a obra e sua articulação com a produção teórica sobre a história dos pensamento. Há, se me permitem afirmar, uma certa tirania do texto.
Lendo o livro do professor Carlos Café, fiquei impressionado com o modo com que a filosofia é apresentada aos estudantes secundaristas na península ibérica. Em Portugal, para meu espanto, corroborando a experiência com os alunso de Setúbal, não há a primazia (ou tirania) do texto original. O acesso à filosofia se dá pela fabulação, pela dramatização, pela ficcionalização das ideias do filósofo… e, por vezes, do próprio filósofo.
O texto original é uma referência, ou um ponto de partida, mas que pode ser temporariamente abandonado em favor de uma construção imaginária, por exemplo, de um Kant contemporâneo, deslocado no tempo e no espaço, travando diálogos platônicos com personagens fictícios.
Se no Brasil, a forma de nos aproximarmos de Kant é pela exegese minuciosa do texto, que implica numa certa aridez, num certo constrangimento do aluno em lidar com a Filosofia. Em Portugal, propõe-se uma aproximação mais lúdica, mas que parece tornar a Filosofia algo mais agradável aos olhos do estudante secundarista.
No livro de Carlos Café há a curios compilação das impressões de alguns alunos secundaristas ao entrarem em contato com a filosofia moral Kantiana:
“A tarefa que Kant nos propõe é tão exigente que até nos desencoraja” - Maria Duarte
“Se todo ser humano agisse segundo a moral de Kant, julgo que se tornaria frio e incapaz de amar” - Lúcia Luz
“O preço a pagar pela moralidade é muito elevado” - Ana Filipa Alfarroba
“Gostaria de Saber se Kant alguma vez agiu em nome da felicidade” - Paula Jacinto
O que aqui no Brasil, invariavelmente, nos perguntaríamos é: “Será que o que
esses alunos portugueses estão lendo é realmente Kant?”.
Não sei. Mas tenho a impressão de que o modo português de ensinar permite uma intimidade com algum Kant (verdadeiro ou não). A abordagem portuguesa parece nutrir uma certa forma de familiaridade e afeto pela filosofia. Um afeto de tal ordem que permite a esses alunos não terem um temor reverencial pela Filosofia, não se sentirem oprimidos pelo peso da História, mas apropriarem-se dela de alguma maneira, sentindo-se íntimos o suficiente para levantarem perguntas como o fizeram a Maria Duarte, a Lúcia Luz, a Ana Filipa e a Paula Jacinto.
Há um mar salgado que separa as duas formas, brasileira e portuguesa, de
apresentar a filosofia aos adolescentes. Não sei que rumos esse diálogo com os professores do ensino médio
de filosofia em Portugal tomará. Mas acredito que existem grandes
navegações possíveis.
Agradeço aos professores Carlos Alberto Café, da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes e ao professor Elington Souza, da Escola Secundária Dom Manuel Martins pelas conversas... que hão de seguir.