A figura retórica que rege o livro é a repetição. As formas das frases se repetem, mas não o seu conteúdo. Como no divã… chega um momento em que não repetimos mais o que falamos… mas repetimos como falamos. O jeito de falar se replica quando recordamos um sonho, quando falamos de um peixe, quando falamos do pai, de uma piscina, de uma piada. E esse jeito que se repete por onde quer que nosso pensamento vá é o nosso jeito.
Nesse livro, até onde consegui contar, as palavras que mais aparecem são os advérbios “não” e “nunca”, geralmente seguidos de um verbo. Essas negativas são intercaladas por vírgulas que marcam a cadência da repetição retórica.
Os personagens dos contos estão sempre às voltas com esse jeito de ser marcado pela repetição. Uma repetição que consiste num constante “passo atrás” diante da experiência… “não” aceitar, “não” ligar, “não” ter… “nunca” soube, “nunca” mais ser assim, “nunca” falam…
Só que esse “passo atrás” diante da experiência não é um receio de viver. Não. Longe disso. O passo atrás é um jeito de não se impor ao mundo, de não se impor ao outro. Um jeito de olhar as coisas, dando a elas o espaço e o tempo que precisam para desabrocharem como uma experiência intensa e singular. Os “nãos” e os “nuncas” que se repetem, separados por vírgulas, formam um cordão em torno da experiência que está sendo descrita no livro.
Os “nãos”, os “nuncas” e as vírgulas formam a curva do braço e do cotovelo onde se aconchega a prosa recém-nascida embalada pela autora.
Esse jeito de descrever, com o cuidado de não machucar, de não impor, de não sufocar o objeto do texto, é o jeito da autora de nos mostrar a delicadeza da vida.
E a delicadeza não é uma fragilidade. Nem é uma desvantagem.
A delicadeza é uma virtude. A delicadeza no ato, a delicadeza na fala, a delicadeza na escrita torna a vida interessante. Porque a delicadeza consiste justamente em dar um passo atrás, aguardar sem se intrometer, e, desse jeito, ver o mundo desabrochar em cada detalhe.
Nesse livro, vemos pessoas diante da morte, diante da guerra, diante da perda, diante do tédio. Imersos nessas experiências tão humanas, os personagens se veem aprisionados entre o medo, a confusão e a raiva.
Diante desses sentimentos, a autora faz com que seus personagens deem um passo atrás, olhem o próprio medo e a própria raiva, a própria confusão, e encontrem uma maneira de enxergar com delicadeza , cercando com "nãos", "nuncas" e vírgulas, os detalhes da experiência que estão vivendo.
O olhar, o gesto delicado sobre a vida, mesmo nos seus momentos de intensa angústia, fazem surgir entre o medo, a confusão e a raiva, um caminho possível: a coragem. Quem consegue olhar os detalhes, mesmo das experiências angustiantes, sabe o que está sendo gestado, sabe o que é possível desabrochar das pequenas coisas. E desse saber, pode agir para além do medo, da raiva e da confusão... e esse é um agir corajoso. Os textos desse livro nos mostram que a delicadeza é uma forma corajosa de trilhar a vida. E a coragem é uma virtude.
Mesmo diante da morte de um ente querido é possível olhar e agir com delicadeza… e isso muda a experiência da despedida. Mesmo diante do tédio de uma relação, é possível ver, com delicadeza, os gestos e pensamentos contidos de afeto, e isso muda o silêncio do apartamento. Mesmo diante da angústia da perda é possível olhar com delicadeza o que restou, e isso muda o vazio.
A delicadeza é uma virtude. A delicadeza é um caminho para um novo mundo.
Esse “é um livro inacabado e que deseja durar até a última mulher liberta na Terra”.
Esse livro se chama "Muito Magra para ter um Filho, Muito Gorda para ter um Homem", escrito, com delicadeza, pela amiga Amanda Machado.