28 de março de 2014

Thelma and Louise (Defensoria Pública)

   O governo brasileiro mantém um Programa de Arrendamento Residencial criado para atender às necessidades de moradia da população de baixa renda.
   A gestora desse fundo é a Caixa Econômica Federal, que firma o contrato de arrendamento com os interessados.
   Quando alguém que compra a casa própria através desse programa, deixa de pagar as parcelas do arrendamento, há a quebra de contrato.
   Por se tratar de um programa com sua estrutura toda fixada em lei, uma vez descumprido o contrato, não há muita margem para negociação. A Caixa sequer aceita o parcelamento da dívida.
   Ou paga  ou sai. É a lei.
   Quando a coisa toda chega nesse momento de tensão, a Caixa Econômica entra na Justiça com uma ação de Reintegração de Posse, pedindo a retomada do imóvel e o consequente despejo do morador.
   Na vara onde trabalho, o juiz, por considerar a medida traumática, antes de decidir pelo despejo, marca uma audiência de conciliação para ver se a pessoa pode ou não dar um jeito de arranjar o dinheiro à vista: ou paga ou sai.
   Entretanto, como eu disse, a margem para negociação é quase inexistente. O devedor entra na sala de audiências sabendo o que sempre soube: ou paga ou sai.
   Por se tratar de pessoas com poucos recursos financeiros, às vezes chegam acompanhados de defensores públicos que também estão cientes da situação: ou paga ou sai.
   Via de regra, tanto o devedor quanto seu advogado chegam com um ar de desesperança, resignação e tristeza em saber que, por não ter conseguido arcar com as prestações, o devedor vai perder a casa própria.
   É assim quase sempre.
   Outro dia, porém, apareceu na sala de audiências uma devedora, uma senhora com seus quase cinquenta anos, sobrepeso, cabelo tingido e um inegável ar de confiança, acompanhada de uma defensora pública que eu nunca tinha visto antes.
   A devedora não tinha o dinheiro para pagar a casa e, pelo que expôs, seria-lhe difícil até mesmo pagar um eventual parcelamento que a Caixa certamente não proporia. E no entanto, estava ali com um olhar esperançoso.
   Num primeiro momento, não compreendi. Afinal, até então, impunha-se a frieza da lei: ou paga ou sai.
   Todavia, quando todos se sentaram, percebi que a devedora sentia-se amparada por aquela defensora pública. Ela sabia o que estava acontecendo, sabia os detalhes do que iriam lhe perguntar e de como aquela trâmite todo iria transcorrer e a todo momento olhava para a defensora para extrair de sua advogada alguma certeza, alguma confiança.
   Ao final, o resultado da audiência foi o mesmo de sempre. A Caixa propôs um pagamento à vista e outro em 30 dias e só. Ou paga ou sai. A devedora olhou mais uma vez para sua advogada e perguntou "E agora, doutora?".
   A defensora pública explicou-lhe a situação. A devedora aceitou, mesmo sem ter certeza se teria o dinheiro para a segunda parcela. Não se desesperou, pois sabia que aquele resultado era o esperado e que aquilo era o melhor que ela poderia esperar daquela audiência.
   A frieza da lei foi um pouco quebrada pela humanidade e pela dignidade que a defensora conseguiu dar à escolha de sua cliente. Aceitar aquele acordo não era uma derrota, mas um exercício da própria vontade, da própria razão e da própria liberdade, ainda que nos limites estreitos da Lei que rege o Programa de Arrendamento Residencial. 
   Naquele momento, veio-me à lembrança o final do filme "Thelma and Louise" em que as duas amigas, ante opções desesperadoras escolhem a menos pior e, juntas, lançam-se num penhasco.
   É óbvio que a defensora pública não iria lançar-se na dívida de sua cliente, mas certamente a devedora sentia-se acompanhada nessa difícil escolha jurídica que foi obrigada a tomar.
   E eu acho que isso tem lá sua importância.