27 de maio de 2014

Esquecimento

   Para onde vão as coisas das quais bem agora nos lembrávamos e, no entanto, nos esquecemos?
  E, mais constrangedor, para onde vão as coisas das quais nunca nos lembramos e, ainda assim, esquecemos?
   Que lugar misterioso é esse, chamado esquecimento?

   Uma procuração é um instrumento jurídico da mais alta importância. É ela que possibilita a um advogado pleitear direitos de outros.
   É esse pedaço de papel que permite que se postule em juízo direitos alheios. Sem isso, não se opera no judiciário.
   Outro dia, o estagiário Guilherme atendeu uma advogada no balcão do cartório onde trabalho.
   Entre a impressão do registro de carga do processo requisitado e a entrega do mesmo no balcão, perdeu-se o instrumento procuratório.
   - "Cadê a procuração? Eu te dei a procuração?" - perguntou a advogada.
   - "Não sei, deu? Acho que sim. Não lembro. Acho que não. Deve estar no processo, não tá?".
   - "Não", respondeu a Doutora do outro lado do balcão, após folhear os autos.
   - "Será que eu deixei na mesa?".
   E assim, o estagiário Guilherme esqueceu-se de onde tinha colocado a procuração... sendo que sequer sabia ao certo se, em algum momento, lembrara de onde a havia colocado e se havia colocado o bendito papel em algum lugar.
   Esqueceu-se daquilo de que nunca se lembrara.
   E começou a busca. Foi ao gabinete, passou pela minha mesa. "Eu não deixei um papel por aqui?".
   Revirou o cartório em busca não de alguma lembrança, mas do esquecimento. Caçou e caçou e quando todos os armários e todas as prateleiras e mesas e gavetas não revelaram seu esquecimento, o estagiário colocou a lixeira sobre a mesa e pôs-se a desamassar cada rascunho e envelope que haviam sido descartados.
   Abria cada folha com a esperança de encontrar "algo" que se aproximasse daquilo que ele achava que tinha perdido. Evidentemente, não achou nada.
   Ao final, a advogada havia deixado cair a procuração do outro lado do balcão.
   Achei graça de toda a movimentação em torno de um esquecimento que nunca, em tempo algum, chegou a ser uma lembrança.

   Com esse leve sorriso no rosto, perguntei-me porque ria daquela situação. Dei-me conta de que, como o estagiário, só que há mais tempo e por mais horas de cada dia, eu também dedico-me a revirar o cartório judicial.
   Essa pequena constatação fez com que o tênue sorriso desvanecesse. E embora eu me esforçasse em não deixá-la surgir, desviando meus pensamentos para outros assuntos, surgiu a dúvida.
   O que eu busco, diariamente, revirando esses papéis, essas palavras, essas pessoas? Qual esquecimento se esconde na massa de procedimentos que se amontoam no Poder Judiciário? O que é esse "algo", do qual nunca me dei conta, do qual nunca me lembrei e que, no entanto, como o estagiário Guilherme, procuro nas entranhas da repartição, como se o tivesse esquecido?
   A que ponto estou de começar a revirar lixeiras? Se é que já não estou a revirá-las.
   
   Aquele leve sorriso no rosto, talvez fosse uma pontada de desespero.