4 de novembro de 2014

As eleições sob um olhar burocrático

   No cotidiano da burocracia judicial aprendi que há uma relação direta entre a  profundidade com que se investiga os fatos e a aderência do direito a eles.
   Quanto mais bem delimitados os acontecimentos, tanto mais claro se torna o direito aplicável ao caso.
   Por outro lado, se os fatos estão obscuros, se não existem elementos que sustentem como e que aquilo que se alega realmente aconteceu, então se tem a nítida sensação de que o direito não consegue alcançar a realidade, senão a custosas voltas e rodeios processuais e jurisprudenciais.
   Se há um ensinamento burocrático que tirei dessa minha vida enfurnado num cartório judicial é esse: o direito adere ao fato como pode. E se o fato é minguado o direito irá se contorcer e se distorcer para tentar agarrar-se a essas migalhas de realidade.

   Notei que não publiquei nenhuma postagem sobre as eleições presidenciais. Então aqui vai:

   Nessas conturbadas semanas que se passaram, um dos fatos mais bradados pelos corredores da repartição foi o de que o programa bolsa família elegeria a presidente Dilma Rousseff. Pelo modo como esse fato era narrado via-se logo que não se tratava bem de um fato, mas de um argumento que se construía, na sua forma mais radical, mais ou menos da seguinte maneira.

Premissa 1: A capacidade de um indivíduo de obter recursos e satisfazer suas necessidades está diretamente relacionada com a quantidade de liberdade desse indivíduo.

Premissa 2: O programa de transferência de renda "bolsa família", ao dar diretamente a renda (dar o peixe e não ensinar a pescar) tolhe a capacidade do indivíduo de obter recursos.

Conclusão: O programa "bolsa família" reduz a quantidade de liberdade do indivíduo.

   Um dos corolários desse raciocínio é que o voto dos beneficiados pelo bolsa família seria um "voto de cabresto", pois os indivíduos não estariam escolhendo livremente.

   Nunca concordei com esse raciocínio, desde sempre pareceu-me anêmico, embora, devo confessar, nunca me tivesse detido para analisá-lo. Mas tomado pelas agitações do período eleitoral e por força do hábito burocrático achei que valeria a pena olhar para os fatos e ver porque, afinal, o "direito" criado nesse raciocínio parece ter tão pouca aderência à realidade.

    Amartya Sen, economista indiano, prêmio Nobel, lança uma luz sobre os "fatos" que circularam pelos corredores da repartição durante essas eleições que "dividiram o país".

    Quanto à premissa 1, Sen aponta que ao se definir a liberdade pela capacidade de obter recursos está-se limitando a liberdade a uma liberdade utilitária, focada no resultado final do exercício da capacidade de obter recursos: comprar algo, realizar uma vontade, etc. Mas, com isso, deixa-se de entender a liberdade como expansão das capacidades, em geral, de um indivíduo - não apenas capacidade de obter recursos e satisfazer suas vontades. Sen aponta que a liberdade é mais que o exercício da liberdade. Liberdade é também a expansão da própria liberdade, a expansão das capacidades do indivíduo, independentemente do fim que ele queira dar a elas.
   A premissa 1, esse primeiro "fato" propagado pelos corredores da burocracia, portanto, não está descrito de maneira completa, o que pode fazer com que o direito não encontre nele aderência suficiente.

   A premissa 2, de que os programas de transferência de renda "tolhem" a capacidade do indivíduo de obter renda, seguindo o raciocínio de Sen, sofre do mesmo problema, uma certa anemia do real. Os programas de distribuição de renda, numa visada superficial sobre os fatos, "tolhem" essa capacidade utilitária de obtenção de renda, entretanto expandem outras capacidades. Amartya Sen observa que, em situações de extrema carência, o indivíduo sequer tem noção das possibilidades das quais está desprovido, das capacidades que está sendo privado de desenvolver. Em situações de extrema pobreza, explica o indiano, a própria noção de capacidade está tolhida no indivíduo. A transferência de renda nessas situações, portanto, não tolhe as capacidades, mas as expande, pois retira o indivíduo de uma condição de miserabilidade na qual ele sequer percebia que estava alijado de desenvolver qualquer de suas capacidades mais elementares. O "fato" descrito na premissa 2, portanto, também encontra-se incompleto, o que faz com que suspeitemos que a conclusão que daí resulte tenha muito pouca aderência ao real.

   Conclusão. A conclusão de que programas de transferência direta de renda limitam a quantidade de liberdade de um indivíduo, pelo que vimos, encontra-se calcada numa visão incompleta e distorcida da realidade. Amartya Sen, em seus estudos, aponta que, ao contrário do que se bradou no calor das discussões eleitoreiras, os programas de transferência de renda permitem aos indivíduos que saiam de um estado de privação de capacidades para um estado de desenvolvimento dessas capacidades individuais.

   Assim, suspeito que sobre o voto desse indivíduo, beneficiado pelo programa "bolsa-família" não pesa um cabresto.  Pesa apenas a desigualdade social que o tolheu do desenvolvimento de suas capacidades.
   Norteado pela percepção dessa desigualdade, percepção essa tornada possível pelos programas de transferência de renda, ele escolheu seus candidatos. Pode haver voto mais livre que esse?

   Revistos os fatos, um outro direito se aplica. Ao meu ver, um direito muito mais calcado no real e que não carece de distorções para sua aplicação.

   No mais, perdoem-me esse tique burocrático de querer esmiuçar os fatos.

   P.S.: As ideias de Amartya Sen podem ser encontradas no livro cuja capa reproduzo abaixo.