8 de novembro de 2014

Torre de Marfim

   Estou lendo um livro de Henry Rider Haggard, "As Minas do Rei Salomão", traduzido por Eça de Queirós. Comprei-o num sebo, por ser uma tradução de Eça, por custar R$ 3,00 e por estar de férias e poder ler o que me apraz.
   O livro foi escrito em 1885 e, logo pela página 50, o autor narra uma caçada de elefantes. Os fatos são descritos como uma façanha, desprovidos de qualquer reprovação moral. Ao todo, oito animais são abatidos pelo marfim de suas presas.
   A naturalidade com que se encara a morte de um animal pelo mero valor comercial do marfim é o que revela a distância temporal que separa a obra do leitor. No mundo de hoje, essa matança seria desprovida de sentido; pesaria sobre ela um forte julgamento moral, legal e ambiental.
   Assim, ao ler o trecho em que o autor, após a caçada pondera: "Oito elefantes numa manhã, antes do lunch, é decente", o leitor fica se interrogando: "Que mundo e que tempo foi esse em que a morte de oito elefantes era decente?".

   Às vezes, ao ler os processos durante o expediente na repartição, penso que haverá um tempo em que as pessoas não necessitarão de um Estado dizendo quem está certo e quem está errado. Haverá um tempo em que as pessoas serão conscientes de seus direitos e de suas obrigações e, nesse tempo, os envolvidos cumprirão com seus deveres e terão seus direitos respeitados. Nesse tempo, cada um decidirá o que é melhor para si, dentro de seus direitos, respeitando o direito dos outros e, quando houver alguma dúvida, essas partes serão capazes de decidir o que é melhor para todos os envolvidos.

   Nesse tempo, o Estado não será uma entidade externa, essa máquina gigantesca constrangendo os indivíduos; o Estado será uma ideia, uma cultura e estará dentro de cada pessoa e as pessoas serão cidadãs; e ao escolherem, ao tomarem suas decisões, tornarão real o Estado que carregam dentro de si.

   Nesse dia eu terei me tornado um caçador de elefantes que, em seu tempo de glória, fazendo girar a lenta máquina da burocracia, afirmava que milhares de processos, arrastando-se por anos "é decente". Sobre minhas funções e sobre os processos pesará a pergunta: "Que mundo e que tempo foi esse em que era decente aguardar que decidissem por você o que é ou não direito?".

   Um dia, e espero que esse dia não tarde, será mais valiosa a cidadania -  esse elefante de rara beleza -, que o marfim judicial; e sacrificar o primeiro pelo segundo não será uma escolha decente.

foto do presidente Theodore Roosevelt após ter matado um elefante (1909)