O sol
escreve com sombras na superfície da terra.
Em
alguns cantos do mundo, em alguns desertos austrais, é prolixo,
alonga sua escrita deformando o objeto, encompridando-o. Em outros,
como na nublada Inglaterra, é impreciso, redigindo sem contornos
definidos.
No
centro-oeste do Brasil, não. Ali a prosa é curta e precisa. O sol a
pino solta uma sombra sempre enxuta e bem delineada. Mesmo no capim
alto, no pasto novo, mexido pelo vento e pisado pelo gado, está
presente o estilo. No asfalto, entretanto, a forma espartana de
escrita do sol do Cerrado fica mais evidente, inequívoca.
Uma
dessas histórias, escritas pelo sol do interior do Brasil, é que
lhes quero contar. Uma história natalina, com milagres, mas sem
rodeios.
Na
última audiência agendada para aquele ano, dias antes do Natal,
seria ouvida uma testemunha num processo que se arrastava há mais de
meia década na repartição. O depoente era um policial rodoviário
federal que teria presenciado um acidente envolvendo dois caminhões.
Do que me lembro dos autos, as
carretas tinham batido de frente. Um dos caminhões, ao tentar
desviar de um buraco, invadiu a pista contrária, causando a colisão.
Os condutores
morreram na hora.
O
processo era movido pela família de um dos motoristas contra a União
Federal. Exigiam uma indenização alegando que o enorme buraco na
estrada era responsabilidade do governo. Cinco anos depois do
ocorrido, às vésperas
das comemorações de um natal já distante dos fatos narrados no
processo, eu aguardava, na sala de audiências, a chegada do policial
rodoviário, para digitar seu depoimento sobre o buraco –
que talvez não mais existisse ou talvez tivesse dobrado de tamanho –
e sobre o acidente.
Embora
o Estado brasileiro seja laico e também suas instituições, é
notável como a proximidade das comemorações do nascimento de
Cristo alteram o ritmo da repartição pública. O movimento no
balcão do cartório reduz; como por milagre, desaparecem advogados,
peritos judiciais,
autores, réus; muitos servidores agendam suas férias para essa
época a fim de se prepararem para as festividades e, assim, o
cartório se esvazia. Nessa burocracia mais mansa de final de ano eu
aguardava a hora da audiência. Atrás de mim, numa parede branca e
laica, como tantas outras paredes de repartições públicas
brasileiras, estava pregada uma cruz. Pregado na cruz havia um Cristo
que, como eu, aguardava aquela última testemunha antes do Natal.
Às
duas e meia chegou o advogado da família do motorista, o advogado da
União e o policial rodoviário. Digitei os dados pessoais dos
presentes e chamei o juiz. Sentado abaixo do crucifixo, o magistrado
perguntou à testemunha se ele se comprometia em dizer a verdade.
Quid est veritas? O
que é a verdade? Nesses processos que se arrastam por anos,
pergunto-me que verdade pode haver soterrada nos entulhos de
recordações da testemunha. Sob o peso de meia década de
esquecimento, o policial rodoviário disse que sim, que se
comprometia em dizer a verdade. Mas qual verdade?
Perguntaram-lhe
sobre o buraco e sobre o acidente. O advogado da família
esforçava-se por extrair do policial as precárias condições da
estrada e conduzia suas perguntas nesse sentido. O procurador da
União, por sua vez, buscava saber se o caminhão rodava acima da
velocidade permitida ou se havia alguma sinalização indicando as
condições da pista; tudo isso para fazer recair sobre o motorista
alguma parcela
de responsabilidade
na
sua própria morte.
O
policial rodoviário lembrava-se que havia um buraco e que atendeu ao
acidente, mas não se recordava das condições de visibilidade da
pista, se a curva onde ocorreu a batida era acentuada ou não, quais
as condições da pista antes ou depois do buraco, a qual velocidade
poderiam estar os caminhões no momento do acidente ou se existiam
placas indicando o buraco ou a curva. “Não sei dizer com certeza,
faz muito tempo”, repetia.
Essa era a verdade: se havia alguma, estava perdida entre os cinco
anos de memória daquele depoente.
A
verdade que nos restava às vésperas do Natal,
eram as respostas reticentes e repetidas da testemunha.
Todos,
inclusive o Cristo pregado na parede, pareciam resignados com o
resultado daquela última audiência do ano. Em sua derradeira
intervenção, na tentativa de reduzir a responsabilidade da União
no acidente, o advogado perguntou, sem muita esperança:
-
“O senhor se recorda se havia alguma obra sendo realizada na
estrada no dia do acidente?”.
Àquela
pergunta o semblante da testemunha mudou, como se no meio de suas
memórias vacilantes surgisse uma certeza.
-
“Sim, havia uma obra”.
-
“Você acha que havia uma obra ou tem certeza?” - reforçou o
advogado da União.
-
“Eu tenho certeza”.
Todos
franziram as testas. Uma certeza no meio de tantos esquecimentos? O
magistrado que conduzia a audiência inquiriu:
-
“Até agora o senhor não se mostrou muito certo sobre quase nada,
por que a respeito da obra o senhor tem tanta certeza?”.
-
“Por causa da situação” - disse o policial de maneira
enigmática, mas firme.
Enfim,
um lampejo de verdade ameaçava romper naquela última audiência do
ano, às portas do Natal. O Cristo que, diante da pergunta de Pilatos
“Quid est
veritas?”,
deu a entender ser ele a verdade, a verdade tornada homem, moveu-se
no ventre frio da burocracia laica. Anunciava que, pela boca daquela
testemunha viria ao mundo, tornar-se-ia verbo, tornar-se-ia carne;
para então ser pregado nas paredes das repartições públicas
brasileiras. A verdade ameaçava despontar naquele mar calmo de
esquecimentos.
-
“O senhor poderia explicar porque essa lembrança é tão clara?”
– prosseguiu o juiz.
-
“Sim. Como eu disse, foi a situação. Desculpe, mas eu tenho que
explicar antes a situação para esclarecer a coisa da obra. O
acidente aconteceu entre duas carretas grandes, que bateram de
frente. O estrago, o senhor pode imaginar, foi grande. Uma delas
estava carregada com esses perus congelados, desses de Natal. Eu fui
acionado e, quando cheguei ao local da ocorrência, vi todo aquele
carregamento espalhado sobre os destroços do caminhão e sobre a
estrada. Minha primeira preocupação foi verificar se os motoristas
estavam bem. Só que a batida tinha sido muito feia. Deu para
recolher as vítimas, mas estavam mutiladas, tinha pedaço de corpo
para todo lado; demorou muito para tirar tudo das ferragens. Nessa
operação, além dos motoristas, encontrou-se uma outra carteira de
habilitação. Então, podia ter mais alguém preso na cabine, ou até
lançado para fora dela”.
-
“Só um instante” - interrompeu o magistrado - “o senhor não
disse, até agora, de onde veio a certeza de que havia uma obra no
local do acidente”.
-
“Não, mas eu vou dizer... é que a situação... tinha mais uma
vítima. Era de dia e, como a gente tinha demorado para retirar os
dois primeiros corpos e encontrar a outra habilitação, o sol
lascado em cima das ferragens e do asfalto começou a derreter
aquelas toneladas de peru congelado. Era
verão, e o verão daqui...
Virou tudo uma montoeira de carne, escorrendo gordura, água e
sangue. Se tivesse algum corpo, ainda mais naquele tipo de acidente,
ia ser difícil distinguir o que era pedaço de gente do
que era pedaço de ave. As
embalagens tinham se rasgado no impacto e as carnes vazavam para fora
dos plásticos, já meio despedaçadas. Então
eu solicitei que alguém arranjasse uma escavadeira para tirar aquele
monte de carne da estrada o mais rápido possível, para facilitar as
buscas. Para a minha surpresa e pela graça de Deus, em menos de
vinte minutos, apareceu uma escavadeira no local do acidente. Por
isso, vossa Excelência, eu sei que havia uma obra ali por perto. Foi
coisa da providência divina aquela escavadeira... Só que nesse meio
tempo começou a pipocar gente para saquear a carga derramada. Aí,
com o sol a pino e o asfalto ardendo, a escavadeira retirava os perus
da estrada, o povo se acotovelava –
tinha gente que escorregava naquele caldo que já começava a feder
–,
catava o que podia e saía carregando aquelas peças de peru
derretendo e, nesse meio, eu tentava identificar se despontava algum
pedaço de corpo humano entre as carnes que descongelavam. Só que
tudo parecia pedaço de gente, lambrecado pela mistura viscosa de
gordura, sangue e água. Eu
mesmo fiquei preocupado que acabassem levando partes do corpo da
vítima. Calor
lascado, não tinha uma sombra, que pareciam tudo escondidas debaixo
das coisas. Até
que uma hora o motorista da escavadeira, vendo meu desespero disse:
“Se tiver algum corpo aí embaixo o povo acha. Ninguém vai querer
comer pedaço de gente pro Natal”. Foi só então que eu deixei
estar. Por
isso eu não esqueço da situação, era uma
escavadeira que revirava as carnes. Tinha uma obra por ali. Certeza”.
Após
um longo silêncio o advogado da União perguntou, menos por
interesse processual que por curiosidade: “E acharam a outra
vítima?”.
-
“Não. Não tinha outra vítima. É aí que eu digo: A situação.
A carteira de habilitação que encontramos havia sido esquecida por
outro motorista num dos caminhões, informação
que demoramos a conseguir da empresa de transportes.
E eu te digo, mesmo assim, mesmo que ele nunca tivesse entrado
naquela carreta, para mim, não ter achado o corpo dele no meio do
amontoado de peru descongelado,
foi como se alguém tivesse renascido. Foi mesmo obra de Deus, se
você acredita”.
Por
um instante todos naquele recinto ponderaram sobre aquele milagre
impróprio – o renascimento, sob
o sol do Cerrado,
de um desconhecido que nunca morrera – e, sem mais delongas, o juiz
encerrou a audiência e
retirou-se.
Aquele processo veria mais um ano se passar e só voltaria a ser
movimentado após o recesso judicial.
O
advogado da família do motorista, ajeitando os documentos na pasta,
ainda ponderou em voz alta: “Sabe quem eu gostaria de arrolar como
testemunha nesse processo? O Sol. Queria saber o que ele estava
pensando”. Os presentes, sorrimos ante as limitações do direito
processual brasileiro.
Aguardei que todos se retirassem,
fechei a sala de audiências e devolvi os autos para uma das
prateleiras do cartório.
Logo
seria Natal e o Cristo pregado na cruz, como vem fazendo há mais de
dois mil anos, renasceria.
De fato, dias depois, na noite de Natal, vi-me diante de uma grande
ave assada. Enquanto mastigava um pedaço generoso, mordi a língua.
Senti o sangue quente escorrer pelas gengivas. Com a dor alucinante
não conseguia distinguir o que era alimento, o que era língua, o
que era sangue, o que era saliva dentro de minha própria boca. “Este
é o meu corpo... este é o meu sangue. Comei e bebei em memória de
mim”. Lembrei-me da escavadeira a revirar os cadáveres de perus
derretidos em busca de um corpo. Lembrei-me do renascimento do homem
que não morrera,
do
milagre impróprio escrito pelo sol do Cerrado.
P.S.: Em minha adolescência li um conto chamado "O Peru de Natal", escrito por Mário de Andrade. Desde essa leitura, fiquei com vontade de escrever um conto sobre o Natal, igual ao do Mário de Andrade, que não fosse apenas um conto natalino. Hoje, matei minha vontade.