10 de janeiro de 2015

O Peru de Natal

   O sol escreve com sombras na superfície da terra.
   Em alguns cantos do mundo, em alguns desertos austrais, é prolixo, alonga sua escrita deformando o objeto, encompridando-o. Em outros, como na nublada Inglaterra, é impreciso, redigindo sem contornos definidos.
   No centro-oeste do Brasil, não. Ali a prosa é curta e precisa. O sol a pino solta uma sombra sempre enxuta e bem delineada. Mesmo no capim alto, no pasto novo, mexido pelo vento e pisado pelo gado, está presente o estilo. No asfalto, entretanto, a forma espartana de escrita do sol do Cerrado fica mais evidente, inequívoca.
   Uma dessas histórias, escritas pelo sol do interior do Brasil, é que lhes quero contar. Uma história natalina, com milagres, mas sem rodeios.
   Na última audiência agendada para aquele ano, dias antes do Natal, seria ouvida uma testemunha num processo que se arrastava há mais de meia década na repartição. O depoente era um policial rodoviário federal que teria presenciado um acidente envolvendo dois caminhões. Do que me lembro dos autos, as carretas tinham batido de frente. Um dos caminhões, ao tentar desviar de um buraco, invadiu a pista contrária, causando a colisão. Os condutores morreram na hora.
   O processo era movido pela família de um dos motoristas contra a União Federal. Exigiam uma indenização alegando que o enorme buraco na estrada era responsabilidade do governo. Cinco anos depois do ocorrido, às vésperas das comemorações de um natal já distante dos fatos narrados no processo, eu aguardava, na sala de audiências, a chegada do policial rodoviário, para digitar seu depoimento sobre o buraco – que talvez não mais existisse ou talvez tivesse dobrado de tamanho – e sobre o acidente.
    Embora o Estado brasileiro seja laico e também suas instituições, é notável como a proximidade das comemorações do nascimento de Cristo alteram o ritmo da repartição pública. O movimento no balcão do cartório reduz; como por milagre, desaparecem advogados, peritos judiciais, autores, réus; muitos servidores agendam suas férias para essa época a fim de se prepararem para as festividades e, assim, o cartório se esvazia. Nessa burocracia mais mansa de final de ano eu aguardava a hora da audiência. Atrás de mim, numa parede branca e laica, como tantas outras paredes de repartições públicas brasileiras, estava pregada uma cruz. Pregado na cruz havia um Cristo que, como eu, aguardava aquela última testemunha antes do Natal.
    Às duas e meia chegou o advogado da família do motorista, o advogado da União e o policial rodoviário. Digitei os dados pessoais dos presentes e chamei o juiz. Sentado abaixo do crucifixo, o magistrado perguntou à testemunha se ele se comprometia em dizer a verdade. Quid est veritas? O que é a verdade? Nesses processos que se arrastam por anos, pergunto-me que verdade pode haver soterrada nos entulhos de recordações da testemunha. Sob o peso de meia década de esquecimento, o policial rodoviário disse que sim, que se comprometia em dizer a verdade. Mas qual verdade?
    Perguntaram-lhe sobre o buraco e sobre o acidente. O advogado da família esforçava-se por extrair do policial as precárias condições da estrada e conduzia suas perguntas nesse sentido. O procurador da União, por sua vez, buscava saber se o caminhão rodava acima da velocidade permitida ou se havia alguma sinalização indicando as condições da pista; tudo isso para fazer recair sobre o motorista alguma parcela de responsabilidade na sua própria morte.
   O policial rodoviário lembrava-se que havia um buraco e que atendeu ao acidente, mas não se recordava das condições de visibilidade da pista, se a curva onde ocorreu a batida era acentuada ou não, quais as condições da pista antes ou depois do buraco, a qual velocidade poderiam estar os caminhões no momento do acidente ou se existiam placas indicando o buraco ou a curva. “Não sei dizer com certeza, faz muito tempo”, repetia. Essa era a verdade: se havia alguma, estava perdida entre os cinco anos de memória daquele depoente.
   A verdade que nos restava às vésperas do Natal, eram as respostas reticentes e repetidas da testemunha.
   Todos, inclusive o Cristo pregado na parede, pareciam resignados com o resultado daquela última audiência do ano. Em sua derradeira intervenção, na tentativa de reduzir a responsabilidade da União no acidente, o advogado perguntou, sem muita esperança:
   - “O senhor se recorda se havia alguma obra sendo realizada na estrada no dia do acidente?”.
   Àquela pergunta o semblante da testemunha mudou, como se no meio de suas memórias vacilantes surgisse uma certeza.
   - “Sim, havia uma obra”.
   - “Você acha que havia uma obra ou tem certeza?” - reforçou o advogado da União.
   - “Eu tenho certeza”.
  Todos franziram as testas. Uma certeza no meio de tantos esquecimentos? O magistrado que conduzia a audiência inquiriu:
   - “Até agora o senhor não se mostrou muito certo sobre quase nada, por que a respeito da obra o senhor tem tanta certeza?”.
   - “Por causa da situação” - disse o policial de maneira enigmática, mas firme.
   Enfim, um lampejo de verdade ameaçava romper naquela última audiência do ano, às portas do Natal. O Cristo que, diante da pergunta de Pilatos “Quid est veritas?”, deu a entender ser ele a verdade, a verdade tornada homem, moveu-se no ventre frio da burocracia laica. Anunciava que, pela boca daquela testemunha viria ao mundo, tornar-se-ia verbo, tornar-se-ia carne; para então ser pregado nas paredes das repartições públicas brasileiras. A verdade ameaçava despontar naquele mar calmo de esquecimentos.
   - “O senhor poderia explicar porque essa lembrança é tão clara?” – prosseguiu o juiz.
   - “Sim. Como eu disse, foi a situação. Desculpe, mas eu tenho que explicar antes a situação para esclarecer a coisa da obra. O acidente aconteceu entre duas carretas grandes, que bateram de frente. O estrago, o senhor pode imaginar, foi grande. Uma delas estava carregada com esses perus congelados, desses de Natal. Eu fui acionado e, quando cheguei ao local da ocorrência, vi todo aquele carregamento espalhado sobre os destroços do caminhão e sobre a estrada. Minha primeira preocupação foi verificar se os motoristas estavam bem. Só que a batida tinha sido muito feia. Deu para recolher as vítimas, mas estavam mutiladas, tinha pedaço de corpo para todo lado; demorou muito para tirar tudo das ferragens. Nessa operação, além dos motoristas, encontrou-se uma outra carteira de habilitação. Então, podia ter mais alguém preso na cabine, ou até lançado para fora dela”.
   - “Só um instante” - interrompeu o magistrado - “o senhor não disse, até agora, de onde veio a certeza de que havia uma obra no local do acidente”.
   - “Não, mas eu vou dizer... é que a situação... tinha mais uma vítima. Era de dia e, como a gente tinha demorado para retirar os dois primeiros corpos e encontrar a outra habilitação, o sol lascado em cima das ferragens e do asfalto começou a derreter aquelas toneladas de peru congelado. Era verão, e o verão daqui... Virou tudo uma montoeira de carne, escorrendo gordura, água e sangue. Se tivesse algum corpo, ainda mais naquele tipo de acidente, ia ser difícil distinguir o que era pedaço de gente do que era pedaço de ave. As embalagens tinham se rasgado no impacto e as carnes vazavam para fora dos plásticos, já meio despedaçadas. Então eu solicitei que alguém arranjasse uma escavadeira para tirar aquele monte de carne da estrada o mais rápido possível, para facilitar as buscas. Para a minha surpresa e pela graça de Deus, em menos de vinte minutos, apareceu uma escavadeira no local do acidente. Por isso, vossa Excelência, eu sei que havia uma obra ali por perto. Foi coisa da providência divina aquela escavadeira... Só que nesse meio tempo começou a pipocar gente para saquear a carga derramada. Aí, com o sol a pino e o asfalto ardendo, a escavadeira retirava os perus da estrada, o povo se acotovelava – tinha gente que escorregava naquele caldo que já começava a feder –, catava o que podia e saía carregando aquelas peças de peru derretendo e, nesse meio, eu tentava identificar se despontava algum pedaço de corpo humano entre as carnes que descongelavam. Só que tudo parecia pedaço de gente, lambrecado pela mistura viscosa de gordura, sangue e água. Eu mesmo fiquei preocupado que acabassem levando partes do corpo da vítima. Calor lascado, não tinha uma sombra, que pareciam tudo escondidas debaixo das coisas. Até que uma hora o motorista da escavadeira, vendo meu desespero disse: “Se tiver algum corpo aí embaixo o povo acha. Ninguém vai querer comer pedaço de gente pro Natal”. Foi só então que eu deixei estar. Por isso eu não esqueço da situação, era uma escavadeira que revirava as carnes. Tinha uma obra por ali. Certeza”.
   Após um longo silêncio o advogado da União perguntou, menos por interesse processual que por curiosidade: “E acharam a outra vítima?”.
   - “Não. Não tinha outra vítima. É aí que eu digo: A situação. A carteira de habilitação que encontramos havia sido esquecida por outro motorista num dos caminhões, informação que demoramos a conseguir da empresa de transportes. E eu te digo, mesmo assim, mesmo que ele nunca tivesse entrado naquela carreta, para mim, não ter achado o corpo dele no meio do amontoado de peru descongelado, foi como se alguém tivesse renascido. Foi mesmo obra de Deus, se você acredita”.
  Por um instante todos naquele recinto ponderaram sobre aquele milagre impróprio – o renascimento, sob o sol do Cerrado, de um desconhecido que nunca morrera – e, sem mais delongas, o juiz encerrou a audiência e retirou-se. Aquele processo veria mais um ano se passar e só voltaria a ser movimentado após o recesso judicial.
   O advogado da família do motorista, ajeitando os documentos na pasta, ainda ponderou em voz alta: “Sabe quem eu gostaria de arrolar como testemunha nesse processo? O Sol. Queria saber o que ele estava pensando”. Os presentes, sorrimos ante as limitações do direito processual brasileiro.
   Aguardei que todos se retirassem, fechei a sala de audiências e devolvi os autos para uma das prateleiras do cartório.
   Logo seria Natal e o Cristo pregado na cruz, como vem fazendo há mais de dois mil anos, renasceria.

   De fato, dias depois, na noite de Natal, vi-me diante de uma grande ave assada. Enquanto mastigava um pedaço generoso, mordi a língua. Senti o sangue quente escorrer pelas gengivas. Com a dor alucinante não conseguia distinguir o que era alimento, o que era língua, o que era sangue, o que era saliva dentro de minha própria boca. “Este é o meu corpo... este é o meu sangue. Comei e bebei em memória de mim”. Lembrei-me da escavadeira a revirar os cadáveres de perus derretidos em busca de um corpo. Lembrei-me do renascimento do homem que não morrera, do milagre impróprio escrito pelo sol do Cerrado.

P.S.: Em minha adolescência li um conto chamado "O Peru de Natal", escrito por Mário de Andrade. Desde essa leitura, fiquei com vontade de escrever um conto sobre o Natal, igual ao do Mário de Andrade, que não fosse apenas um conto natalino. Hoje, matei minha vontade.