Essa
coisa de posar para fotos, não gosto. Parar na frente de uma câmera e aguardar.
Nunca gostei.
E nunca
soube o porquê desse desgosto todo. Quando alguém fala: “Vamos tirar uma foto”,
logo lembro do Coronel, na frase que abre “Cem Anos de Solidão”. Garcia Marquez
começa o romance assim: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento,
o Coronel Aureliano Buendía, havia de recordar aquela tarde remota em que seu
pai o levou para conhecer o gelo”. A mim, passa-me o mesmo, passa-me um mundo de lembranças pela cabeça
toda vez que me ponho diante de uma câmera, como se dali a um instante me
fossem varar o corpo de balas. O resultado disso foi uma infância e uma
adolescência sem muitos registros. Não lembro de muitas fotografias em
piscinas, andando de bicicleta, em restaurantes, festas de aniversário, etc.
Entre o
registro histórico e o desgosto, prevaleceu o mais pessoal, o desgosto.
Até que
um dia – isso há muitos anos – na faculdade de filosofia, um colega de classe
me explicou que o ato de fotografar é extremamente agressivo. Apontar a câmera
para alguém, fazer a mira, manter as mãos firmes, pressionar o disparador, o
som do espelho subindo e descendo e do obturador desabrochando. Tudo isso é
como atirar numa pessoa com uma arma. Nunca tinham me explicado isso.
Parando
para pensar, a coisa fazia sentido. Estar atrás de uma câmera, de um revólver,
qual a diferença? A objetiva é igual ao cano de uma pistola. E tanto um quanto
a outra, quando certeiros, dão cabo da alma do sujeito. O resultado é um corpo
sem vida, espichado no chão ou no negativo. Continuo sem gostar de tirar
retratos, mas agora sei porque. Sei porque me lembro de Aureliano Buendía. Não
gosto que me apontem uma arma na cara. Instinto de sobrevivência.
O rapaz
que me explicou essa questão era um fotógrafo, chamado Guilherme. Andava com
uma câmera Nikon na bolsa. Arma pesada, de material negro fosco, importada. A morte tem sempre esse jeito estrangeiro. "O acontecimento nunca é indígena. Chega sempre de fora, sacode as almas, incendeia o tempo e, depois, retira-se" - dizia Mia Couto. E
como Guilherme sabia dessa história toda da câmera ter poder de fogo, manejava o equipamento sem movimentos bruscos e sem ruídos desnecessários, era
uma ação coordenada e condicionada por anos de treinamento. Profissional. Eu
acho que era um tipo de sniper andando solto pela faculdade.
Até a
bolsa onde carregava a Nikon não tinha velcro, para reduzir o barulho.
Guilherme tirava a foto, guardava a máquina e a vítima sequer se dava conta.
Nos
anos de graduação presenciei diversos disparos, alguns dentro da sala de aula,
outros na cantina da reitoria, nos corredores da Universidade Federal do Paraná.
Entre um tiro e outro, tornamo-nos amigos, não me lembro exatamente quando.
“E os outros corpos?”. Guilherme era
descendente de italianos. Nessas horas eu lembrava que os outros corpos, metidos
em negativos como defuntos em sacos plásticos pretos, poderiam estar afundados
em químicos fotográficos, esquartejados em alguma lixeira ou mesmo incinerados.
Máfia. Aqueles cadáveres jamais seriam vistos. Um ou outro talvez aparecesse
mais adiante, boiando, já em decomposição, ou incinerado. Nunca perguntei pelos
corpos que não apareceram.
Ver as revelações
trazia à tona um tremor, uma fascinação por ter testemunhado aquele evento
único, violento e, no entanto, uma vez impresso, bonito. Pelos anos de
graduação, no período em que nos encontrávamos na faculdade, vi alguns tiros e
uns poucos corpos. Não entendia muito bem o funcionamento da câmera, do
negativo, ou da ampliação fotográfica; não entendia nem da arma nem dos
cadáveres, mas achava interessante ouvir as explicações desse colega sobre
ambos.
Eu
gostava de ouvir as considerações de Guilherme sobre a fotografia.
Um tiro
nunca era só um tiro. Era um veredito.
Fato é
que Guilherme não saía atirando a esmo. Olhava muito. De vez em quando sacava a
máquina, fazia a pontaria, mas não apertava o gatilho. Alguma coisa lhe passava
pela cabeça e levava o tiro embora. Nunca perguntei o que era, mas era alguma
coisa; que ele viu? Que ele pensou?
Conversávamos
sobre nossos pensamentos, sobre os pensamentos de outros, sobre as fotografias,
mas nunca conversamos sobre aquelas pausas, aqueles instantes que frustravam o
disparo; sobre as fotografias que não existiam. Essa amizade antiga fechou
muitas lacunas no meu modo de ver o mundo, mas abriu outras.
Guilherme
parava para pensar nas coisas. Parava para pensar como parava para fotografar. Uma
ação era espelho da outra. Minha
suspeita era que seria possível entender como aquele cara pensava, pelo jeito
como ele tirava fotos e vice versa. Agradava-me conversar com ele não apenas
pelos assuntos, mas também por causa dessas pausas que nutriam o diálogo, por
essas lacunas que se abriam e ficavam como migalhas de pão para seguirmos
conversas futuras.
Esses
intervalos, essas migalhas eram para onde as conversas voltavam quando nos
encontrávamos. Por isso elas tinham esse hábito de se repetirem, cada vez de
uma maneira diferente.
Acontece
que ao final da graduação os corvos vieram e comeram as migalhas. Não
voltaríamos por aquele caminho. Perdê-lo-íamos.
As
perguntas hipotéticas sobre arte, sobre a ética da criação artística, sobre o
tempo, o espaço, sobre a legitimidade das buscas pessoais, sobre as músicas de
Tom Jobim, sobre a felicidade, sobre o sentido da vida, ficaram no bico dos
corvos. Perdemos a trilha de nossas conversas.
Eu me tornei um burocrata no Centro-Oeste do país, onde nunca mais vi uma fotografia autoral ampliada em papel fotográfico e certamente nunca mais ponderei sobre o assunto.
Eu me tornei um burocrata no Centro-Oeste do país, onde nunca mais vi uma fotografia autoral ampliada em papel fotográfico e certamente nunca mais ponderei sobre o assunto.
Na
última década devo ter falado quatro ou cinco vezes com Guilherme, por
telefone.
Em todas essas conversas cheguei à conclusão de que ele guardara uma migalha de pão, uma pergunta não respondida envelhecida por quase dez anos.
Em todas essas conversas cheguei à conclusão de que ele guardara uma migalha de pão, uma pergunta não respondida envelhecida por quase dez anos.
Na
primeira vez que nos falamos, depois do final da graduação, achei que tivesse sido mera coincidência, acaso. Uma
pergunta que tivesse escapado inconscientemente. Mas não, a questão se repetiu
da segunda, terceira, quarta e quinta vez que lhe telefonei.
Guilherme
ficara com uma migalha de pão daquelas antigas conversas.
Eu não
sabia o que lhe dizer. Não sabia que resposta lhe dar. E esse não saber, que
antes era uma ponta de conversa deixada solta, à espera de um próximo debate,
agora me incomodava. Era um desassossego. A pergunta me constrangia como uma
câmera apontada para me fazer o retrato. Quase podia vê-lo, atrás da Nikon, com
o dedo no disparador, interrogando-me.
Para
evitar a pergunta, aos poucos, deixei de telefonar e, por anos, não pensei mais
naquela bendita migalha.
Neste
ano novo, lembrei-me de ligar, mas, mais uma vez, veio-me à memória a pergunta
e o desgosto de posar para foto... Se ligasse, sabia que me veria de novo
diante da pergunta. Como o Coronel Aureliano Buendía diante do pelotão de
fuzilamento: “Abriu os olhos com uma curiosidade de calafrio, esperando
chocar-se com a trajetória incandescente dos projéteis (...)”. Não telefonei.
Todas
as vezes que falo com Guilherme ao telefone ele me pergunta “Você está feliz
metido nessa vida burocrática?”. O questionamento hipotético por trás dessa interrogação
e sobre o qual acho constrangedor me debruçar é o seguinte: “É possível alguma
forma de felicidade na repetição obsessiva e infinita da burocracia?”.
Essa migalha de pão, essa dúvida, sobreviveu a uma década e hoje é o ponto de onde deve começar uma nova conversa. Mas não sei o que dizer a esse meu amigo.
Uma
trilha com apenas uma migalha de pão – essa migalha que restou de um passado
remoto – vira uma encruzilhada, não um caminho.
O ano virou, Não falei com Guilherme. Esse texto é um diálogo imaginário de um telefonema que não existiu na virada de um ano que passou. Falo com as fotos porque carrego a suspeita de que, assim como meu amigo pára para pensar, ele, de maneira simétrica, pára para fotografar... não é a mesma coisa. Começo o ano de 2016 devendo um telefonema.
As imagens que guiaram a prosa desta postagem foram tiradas do site www.ghisoni.com.br.