5 de janeiro de 2016

Diálogo Imaginário

                Essa coisa de posar para fotos, não gosto. Parar na frente de uma câmera e aguardar. Nunca gostei.
                E nunca soube o porquê desse desgosto todo. Quando alguém fala: “Vamos tirar uma foto”, logo lembro do Coronel, na frase que abre “Cem Anos de Solidão”. Garcia Marquez começa o romance assim: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía, havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. A mim, passa-me o mesmo, passa-me um mundo de lembranças pela cabeça toda vez que me ponho diante de uma câmera, como se dali a um instante me fossem varar o corpo de balas. O resultado disso foi uma infância e uma adolescência sem muitos registros. Não lembro de muitas fotografias em piscinas, andando de bicicleta, em restaurantes, festas de aniversário, etc.
                Entre o registro histórico e o desgosto, prevaleceu o mais pessoal, o desgosto.
                Até que um dia – isso há muitos anos – na faculdade de filosofia, um colega de classe me explicou que o ato de fotografar é extremamente agressivo. Apontar a câmera para alguém, fazer a mira, manter as mãos firmes, pressionar o disparador, o som do espelho subindo e descendo e do obturador desabrochando. Tudo isso é como atirar numa pessoa com uma arma. Nunca tinham me explicado isso.
                Parando para pensar, a coisa fazia sentido. Estar atrás de uma câmera, de um revólver, qual a diferença? A objetiva é igual ao cano de uma pistola. E tanto um quanto a outra, quando certeiros, dão cabo da alma do sujeito. O resultado é um corpo sem vida, espichado no chão ou no negativo. Continuo sem gostar de tirar retratos, mas agora sei porque. Sei porque me lembro de Aureliano Buendía. Não gosto que me apontem uma arma na cara. Instinto de sobrevivência.


                O rapaz que me explicou essa questão era um fotógrafo, chamado Guilherme. Andava com uma câmera Nikon na bolsa. Arma pesada, de material negro fosco, importada. A morte tem sempre esse jeito estrangeiro. "O acontecimento nunca é indígena. Chega sempre de fora, sacode as almas, incendeia o tempo e, depois, retira-se" - dizia Mia Couto. E como Guilherme sabia dessa história toda da câmera ter poder de fogo, manejava o equipamento sem movimentos bruscos e sem ruídos  desnecessários, era uma ação coordenada e condicionada por anos de treinamento. Profissional. Eu acho que era um tipo de sniper andando solto pela faculdade.               
                Até a bolsa onde carregava a Nikon não tinha velcro, para reduzir o barulho. Guilherme tirava a foto, guardava a máquina e a vítima sequer se dava conta.


                Nos anos de graduação presenciei diversos disparos, alguns dentro da sala de aula, outros na cantina da reitoria, nos corredores da Universidade Federal do Paraná. Entre um tiro e outro, tornamo-nos amigos, não me lembro exatamente quando.
                Semanas, ou meses depois de um disparo qualquer, em outra conversa, surgia a foto revelada, o corpo. Eu via a fotografia ampliada e lembrava do momento do tiro. Era como esses reconhecimentos forenses que vemos em filmes americanos. Pensava comigo: “Eu lembro desse! Tá diferente de como eu lembrava, mas é ele, com certeza. E os outros?”.
                 “E os outros corpos?”. Guilherme era descendente de italianos. Nessas horas eu lembrava que os outros corpos, metidos em negativos como defuntos em sacos plásticos pretos, poderiam estar afundados em químicos fotográficos, esquartejados em alguma lixeira ou mesmo incinerados. Máfia. Aqueles cadáveres jamais seriam vistos. Um ou outro talvez aparecesse mais adiante, boiando, já em decomposição, ou incinerado. Nunca perguntei pelos corpos que não apareceram.


                Ver as revelações trazia à tona um tremor, uma fascinação por ter testemunhado aquele evento único, violento e, no entanto, uma vez impresso, bonito. Pelos anos de graduação, no período em que nos encontrávamos na faculdade, vi alguns tiros e uns poucos corpos. Não entendia muito bem o funcionamento da câmera, do negativo, ou da ampliação fotográfica; não entendia nem da arma nem dos cadáveres, mas achava interessante ouvir as explicações desse colega sobre ambos.
                Existe um encantamento na fala dos homens quando descrevem aquilo em que apostaram parte de suas vidas. Pegue um pesquisador ou uma pesquisadora, que tenha posto trinta anos de sua vida no estudo de um tipo específico de bactéria que só existe no estômago de um bicho qualquer que só é encontrado numa lagoa perdida no leste da Ásia. Esse homem ou essa mulher irá lhe contar as coisas mais fascinantes, com os detalhes mais curiosos sobre esse micro-organismo aparentemente insignificante, e nós ouviremos deslumbrados esses saberes desconhecidos, assim como Kublai Khan ouvia as narrativas de Marco Pólo sobre as cidades invisíveis.


                Eu gostava de ouvir as considerações de Guilherme sobre a fotografia.
          Uma foto nunca era só uma foto. Havia um sentido sem fim queimando naquele papel fotográfico, um sentido que viajava entre as formas reveladas, as formas não reveladas, o acaso, o excesso de luz, a falta de luz, o negativo, os químicos, a ampliação, a câmera, o instante, o fotógrafo, a coisa fotografada. Sobre todas essas possibilidades, sobre todas essas evidências estampadas na fotografia, como prova de que o mundo existia, Guilherme ponderava.
                Um tiro nunca era só um tiro. Era um veredito.
                Fato é que Guilherme não saía atirando a esmo. Olhava muito. De vez em quando sacava a máquina, fazia a pontaria, mas não apertava o gatilho. Alguma coisa lhe passava pela cabeça e levava o tiro embora. Nunca perguntei o que era, mas era alguma coisa; que ele viu? Que ele pensou?
         Conversávamos sobre nossos pensamentos, sobre os pensamentos de outros, sobre as fotografias, mas nunca conversamos sobre aquelas pausas, aqueles instantes que frustravam o disparo; sobre as fotografias que não existiam. Essa amizade antiga fechou muitas lacunas no meu modo de ver o mundo, mas abriu outras.
                Guilherme parava para pensar nas coisas. Parava para pensar como parava para fotografar. Uma ação era espelho da outra.  Minha suspeita era que seria possível entender como aquele cara pensava, pelo jeito como ele tirava fotos e vice versa. Agradava-me conversar com ele não apenas pelos assuntos, mas também por causa dessas pausas que nutriam o diálogo, por essas lacunas que se abriam e ficavam como migalhas de pão para seguirmos conversas futuras.


                Esses intervalos, essas migalhas eram para onde as conversas voltavam quando nos encontrávamos. Por isso elas tinham esse hábito de se repetirem, cada vez de uma maneira diferente.
                 Por quatro anos conversamos assim, deixando perguntas sem respostas, para depois voltarmos a elas. Hoje, entendo que havia uma certa ingenuidade nesse jeito de confabular. Quatro anos pareciam tempo de sobra para inventar uma trilha de migalhas e por ela retornarmos, amarrando os diálogos deixados em aberto, respondendo às perguntas hipotéticas. Conversávamos com a fé depositada por Hansel em sua estratégia para não se perder.
                Acontece que ao final da graduação os corvos vieram e comeram as migalhas. Não voltaríamos por aquele caminho. Perdê-lo-íamos.
                As perguntas hipotéticas sobre arte, sobre a ética da criação artística, sobre o tempo, o espaço, sobre a legitimidade das buscas pessoais, sobre as músicas de Tom Jobim, sobre a felicidade, sobre o sentido da vida, ficaram no bico dos corvos. Perdemos a trilha de nossas conversas.
                      Eu me tornei um burocrata no Centro-Oeste do país, onde nunca mais vi uma fotografia autoral ampliada em papel fotográfico e certamente nunca mais ponderei sobre o assunto. 


                Na última década devo ter falado quatro ou cinco vezes com Guilherme, por telefone.
               Em todas essas conversas cheguei à conclusão de que ele guardara uma migalha de pão, uma pergunta não respondida envelhecida por quase dez anos.
                Na primeira vez que nos falamos, depois do final da graduação, achei que tivesse sido mera coincidência, acaso. Uma pergunta que tivesse escapado inconscientemente. Mas não, a questão se repetiu da segunda, terceira, quarta e quinta vez que lhe telefonei.
                Guilherme ficara com uma migalha de pão daquelas antigas conversas.
                Eu não sabia o que lhe dizer. Não sabia que resposta lhe dar. E esse não saber, que antes era uma ponta de conversa deixada solta, à espera de um próximo debate, agora me incomodava. Era um desassossego. A pergunta me constrangia como uma câmera apontada para me fazer o retrato. Quase podia vê-lo, atrás da Nikon, com o dedo no disparador, interrogando-me.
                Para evitar a pergunta, aos poucos, deixei de telefonar e, por anos, não pensei mais naquela bendita migalha.
                Neste ano novo, lembrei-me de ligar, mas, mais uma vez, veio-me à memória a pergunta e o desgosto de posar para foto... Se ligasse, sabia que me veria de novo diante da pergunta. Como o Coronel Aureliano Buendía diante do pelotão de fuzilamento: “Abriu os olhos com uma curiosidade de calafrio, esperando chocar-se com a trajetória incandescente dos projéteis (...)”. Não telefonei.
                Todas as vezes que falo com Guilherme ao telefone ele me pergunta “Você está feliz metido nessa vida burocrática?”. O questionamento hipotético por trás dessa interrogação e sobre o qual acho constrangedor me debruçar é o seguinte: “É possível alguma forma de felicidade na repetição obsessiva e infinita da burocracia?”.
                      Essa migalha de pão, essa dúvida, sobreviveu a uma década e hoje é o ponto de onde deve começar uma nova conversa. Mas não sei o que dizer a esse meu amigo.
                Uma trilha com apenas uma migalha de pão – essa migalha que restou de um passado remoto – vira uma encruzilhada, não um caminho.



                  O ano virou, Não falei com Guilherme. Esse texto é um diálogo imaginário de um telefonema que não existiu na virada de um ano que passou. Falo com as fotos porque carrego a suspeita de que, assim como meu amigo pára para pensar, ele, de maneira simétrica, pára para fotografar... não é a mesma coisa. Começo o ano de 2016 devendo um telefonema. 
               As imagens que guiaram a prosa desta postagem foram tiradas do site www.ghisoni.com.br