15 de julho de 2017

Sobre as Coisas Não Acontecidas

      Aquilo que não acontece, que não é visto nem sentido, que não repipoca nesse mundo de tanta coisa sucedida, tem uma história, tem corpo, tem espírito, tem trejeito e gingado. O que não acontece tem um passado, um presente e se desdobra pra frente no tempo. O não-acontecido, mesmo sem a acontecência das coisas que ocorrem no mundo, dá um jeito de ficar na memória e nos anseios das gentes. Ah, sim! Ô! O que não acontece, a bem dizer, é quase como se fosse um acontecimento.

      Para começar essa conversa sobre inocorrências, sem muitos desacordos, vamos pegar como ponto de partida um não-acontecido célebre. Quando Drummond nos conta que "No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/Nunca me esquecerei desse acontecimento" tá falando, na verdade, é de não-acontecências, de coisas que não se passaram, de pessoas que não foram nem voltaram por aquele trilheiro; está falando de desabaladas carreiras que não desceram por ali, de gente que não se perdeu, indo passar por aquelas bandas. E de não acontecerem essas viagens todas, ficou a pedra no meio do caminho. É esse mundo de coisa desacontecida, de gente que não foi e nem voltou, de carros de bois que não rodaram, de fugas que por ali não passaram, que o poeta não consegue esquecer.

      Não é da pedra parada que o poeta fala. É do que a pedra imóvel sugere. Espero que ao menos nisso, estejamos de acordo, caro leitor.

      Então, o não acontecido está ai. Quase igual à coisa que acontece, inegável como uma pedra.

      Agora, gente teimosa tem aos montes. Podem até dizer que não, podem dizer que o não-acontecido, justamente por essa falta de acontecência, não tem jeito de ser, mas eu não arredo. Não. Nesse ponto eu sou igual ao poeta, não tenho como contar tudo o que não aconteceu, mas posso apontar onde estão as marcas deixadas pelo do inocorrido: "tinha uma pedra no meio do caminho". E quem descordar eu sinto, mas vou ter que declarar equivocado. Porque eu não tenho como negar - seria entrar em desavença séria comigo mesmo - que eu vejo as coisas que não acontecem. Eu as vejo e elas estão aí, se desdobrando na frente dos nossos olhos. Pelamordedeus. O que não acontece deixa rastro - olha! -, vai deixando marcas por tudo que é canto que não passou, por onde não foi, em quem não viu. É só seguir o trilheiro do não-acontecido para saber tudo daquilo que não foi…

      Taí para quem quiser ver. Tá lá a pedra de Drummond que não me deixa mentir. Agora, uma coisa é certa: essa história do insucedido só é contada de maneira enviezada, no avesso das coisas que acontecem. É preciso olhar com cuidado a pedra no meio do caminho para ver as comitivas que por ali não passaram, as jornadas que nem começaram, os andarilhos que não arrastaram os sapatos puídos pela poeira daquela via estreita... Mas estão todos ali, naquela pedra: inocorridos.

      Olhe ao redor, leitor do céu! Veja! O amor que não se teve coragem de viver fica marcado no oco, no vazio com que se experimenta as outras emoções. Pode ver, tá lá, no coração do arrependido todo o amor não acontecido, em todos os detalhes.

      No enterro do jovem, o luto é essa não-acontecência. É ela que ocupa o velório. O desamparo é dela, de tudo o que não se sucedeu na vida finda tão cedo.

      É a pedra dura de Drummond. Vou ali, caro leitor, pegá-la do meio do caminho. Ei-la, a pedra, maciça. Tu vês? Sentes? Enxergas nela o não acontecido? Dize-me que não e eu a taco para longe, para fora do caminho! Pronto! E agora, olha o caminho sem a pedra... vês agora tudo o que não aconteceu?

      Estamos de acordo que existe o não acontecido?

      E por que falo desse tanto de coisa insucedida?

      É justa a pergunta. Ando, de fato, às voltas com esse assunto.

      É que outro dia me cruzou o caminho um livro. Era como a pedra de Drummond: um compêndio de inocorrências, ali, parado em meu caminho. Nele, como no poema, minam sinais de coisas que não se sucederam. São insucedidos os mais inusitados, um atrás do outro: a história da performance de um artista que nunca ninguém assistiu; a história de uma caixa de música que nunca ninguém ouviu; a história de uma fortuna que nunca ninguém gastou; a história de uma cidade dentro de uma montanha, que nunca ninguém visitou, por não existir nem a cidade, nem a montanha; a história de um crime com uma única testemunha, o próprio assassino, que não se lembra se o assassinato ocorreu; a história de uma ladra arrependida, que não consegue levar adiante seu arrependimento e acaba por não conseguir nunca se arrepender; a história de um recado escrito numa folha de papel, que quem recebeu nunca decifrou; a história de um homem que se lembra de tudo o que os outros lhe falam, palavra por palavra, mas não consegue se lembrar de nada do que ele mesmo falou.

      Nesse curioso e pequeno tomo as inocorrências vão se avolumando, vão se condensando nas páginas do livro, tal qual as inocorrências de Itabira se adensaram na pedra do poeta mineiro. O que é um livro, então, transmuta-se num totem em tributo às coisas não sucedidas.

      Tinha uma pedra no meio do caminho.

      O livro, como a pedra de Drummond, me fez recordar que a Máquina do Mundo, essa engrenagem que se abre de maneira assombrosa e faz as coisas acontecerem, produz também o desacontecido. Ela engendra o que não é. Dela sai mesmo o que nunca aconteceu, nem nunca acontecerá, dela sai, inclusive, a maior e mais incontornável das inocorrências: Deus.

      Eis o curioso título do livro que me cruzou o caminho: "Deus ex Machina" (Deus saído da Máquina), de Victor Paes... o livro das coisas não acontecidas, como a pedra de Itabira.


      Por isso, caro leitor, por conta dessa leitura, ando às voltas com o não-acontecido.