A
conversa miúda da burocracia… Há uma lei para isso, publicada no
Diário Oficial, assinada pelo Presidente da República. Ela
determina que, num ambiente burocrático, as pessoas devem se tratar
com urbanidade. Descumprida, o desurbano pode responder processo
administrativo… o que é um aborrecimento sem fim. Advogados,
produção de provas, testemunhas, intimações, constrangimentos com
colegas, audiências gravadas em vídeo, recursos, fofocas… Tudo
por quê? Por uma desurbanidade às vezes inofensiva.
Mas
a lei não diz exatamente o que é urbanidade. E esse não-dito
alimenta o pavor no espírito burocrático. Na dúvida, em secretaria
sorri-se sempre um sorriso pré-moldado. Os burocratas, para
alimentar as conversas nos recintos oficiais, tiram de seus paletós
assuntos ordenados pela estação do ano: “Está frio”… “Está
um calor hoje!”…. “Essa época seca é brava… tem que se
hidratar”… “E essa chuva, heim?”…
Evita-se
qualquer aprofundamento em questões pessoais, assuntos controversos,
julgamentos mais assertivos, opiniões mais incisivas, tudo a fim de
se garantir que os diálogos se mantenham na área cinzenta da
urbanidade.
Mas
ninguém sabe ao certo o que é essa urbanidade imposta por lei…
então ela se torna uma censura velada, cujos critérios são
desconhecidos, cujas fronteiras cada um fantasia e cuida para nunca
os transpor.
O
limite da urbanidade não foi traçado, é verdade, mas todos sabem que ele está
lá, em algum lugar. As pessoas vão prestando atenção nos assuntos
que dão certo, que não geram atritos ou discórdias e, sempre que
possível, em suas conversas cotidianas, mantém-se nessa zona de
conforto, dentro da lei.
Aos
poucos, esses assuntos pré-fabricados tornam-se a norma. Viram um
consenso, uma convenção e, por hábito, quem vive em secretaria passa a evitar
assuntos diferentes, mesmo que inofensivos, mesmo que urbanos,
atendo-se apenas àqueles já aprovados pelos costumes burocráticos.
Há
uma sólida jurisprudência formada no que diz respeito às conversas
cotidianas de secretaria.
Passa-se
anos confabulando sobre as mesmas coisas num cartório burocrático.
Não pela profundidade e riqueza do assunto escolhido, mas pelos
limites impostos por uma lei imprecisa que cerceia, silenciosamente,
os diálogos, as interações dos indivíduos na burocracia.
A
censura não apenas cala, ela tolhe o espírito, convenciona o
comportamento.
No
entanto, outro dia, uma colega de trabalho fez-me uma pergunta
inesperada.
Eu
havia acabado de chegar para iniciar meu expediente e ainda me
livrava do capacete e jaqueta quando Kenia lançou a indagação: “O
que é a tragédia? Por que uma tragédia é capaz de mudar uma
pessoa?”.
Havia
algo de revolucionário naquela pergunta, algo de subversivo, que
fugia ao ordinário dos assuntos de secretaria. Olhei para os lados
desconfiado...
A
tragédia… Lembrei-me da Poética de Aristóteles. Do que me
recordava do texto, a característica da tragédia era justamente a
mudança pela qual passa o personagem. Talvez não fosse a tragédia
– o evento trágico em si – que efetuasse as mudanças nas
pessoas. Talvez fossem os acontecimentos encadeados para a mudança é
que se tornassem trágicos… quando vistos retrospectivamente. A
tragédia talvez só recebesse esse nome se houvesse alguma mudança
no personagem.
Talvez
a tragédia não mude ninguém… talvez sejam as mudanças nas
pessoas é que tornem os acontecimentos trágicos.
No
fundo, não sabia o que responder à colega. O computador em minha
mesa pedia que eu pressionasse as teclas Ctrl + Alt + Del para
iniciar. Parei por um instante e apenas ponderei que o importante era
que houvesse alguma mudança, para que a tragédia tivesse algum
sentido.
Kenia,
como Aristóteles, considerou as possíveis mudanças engendradas por
eventos trágicos. Discutimos sobre exemplos em que as tragédias
trouxeram o melhor ou o pior nos indivíduos envolvidos.
Ao
final, a colega concluiu que homens e mulheres podem desenvolver
diversas facetas de humanidade após passarem por tragédias.
Não
ousei discutir. Suponho que Aristóteles e Kenia estejam certos em
suas análises poéticas.
Sem
violar a urbanidade, sem desrespeitar a lei, concluímos a conversa
inesperada e retornamos ao trabalho… mas aquela discussão me ficou
na cabeça.
Se
a mudança é o que caracteriza a tragédia, então, com certeza, ao
longo da peça, do texto, devem existir indícios, pistas, resquícios
de que uma mudança se anuncia.
Assim
é com Édipo Rei. Sófocles, ao longo do texto, nos mostra a força
do caráter do monarca, sua rigorosa observância às leis tebanas, narra as mensagens dos oráculos, as suspeitas de Jocasta… então os
acontecimentos, aos poucos, trazem a história do personagem, e o
Rei, que desconhecia seu próprio passado, desconhecia quem
verdadeiramente era, passa a saber. Eis a mudança que torna os
acontecimentos trágicos. Édipo passa da ignorância para o
conhecimento… descobre que é assassino do pai e amante da mãe…
e não suporta a descoberta.
Depois
da mudança vemos que ela estava anunciada desde o início; que
Sófocles deixara uma trilha de indícios sobre a tragicidade dos
eventos narrados.
Assim
parecem ser as tragédias se estivermos falando de dramaturgia… mas
e na vida? Haveriam indícios das mudanças operadas nas pessoas que
vivem alheias à trama da própria existência? É possível ver, nos
eventos cotidianos, a mudança que se avizinha e a tragédia não
anunciada?
É
possível olhar para nossas rotinas, nesse dia-a-dia burocrático,
pleno de urbanidades, e perceber, antes das mudanças, o que de
trágico há em nós? O que há de trágico nos outros?
Dias
depois da conversa com Kenia e com essas caraminholas rondando meus
pensamentos, comecei a ler um livro chamado “As horas”, do
escritor Alex Andrade.
O
texto rompeu a urbanidade censora do cotidiano.
O
livro é uma sequência de pequenas tragédias do dia-a-dia.
Tragédias que se iniciam e se findam no espaço de horas. Nelas
somos sempre lembrados que os indícios das mudanças – dessas
mudanças trágicas – estão nas coisas banais de nossas vidas: Nos
minutos que contamos no relógio, numa carta de amor, num poema lido
em voz alta, numa bituca de cigarro, numa parede fria, num
telefonema, num jogo de videogame, no tilintar de moedas, num
guarda-chuva esquecido, numa casa abandonada, no olhar de um
porteiro, etc.
Essas
pequenas coisas, no trágico das horas, trazem as mudanças possíveis
nos personagens. Vemos as pessoas mudarem nas histórias do livro, em
torno desses pequenos acontecimentos. Os contos que compõem a obra fazem-nos refletir sobre nossas próprias tragédias cotidianas e as
pistas que nos levaram até elas. Mas como em toda tragédia, só
percebemos que são trágicas, depois da mudança que se opera no
personagem, depois da mudança a que nós, os leitores de nossas
tramas, nos sujeitamos.
Tenho
que falar desse livro com minha colega de trabalho. Amanhã, na urbanidade das horas burocráticas.