30 de julho de 2017

O Trágico das Horas

     A conversa miúda da burocracia… Há uma lei para isso, publicada no Diário Oficial, assinada pelo Presidente da República. Ela determina que, num ambiente burocrático, as pessoas devem se tratar com urbanidade. Descumprida, o desurbano pode responder processo administrativo… o que é um aborrecimento sem fim. Advogados, produção de provas, testemunhas, intimações, constrangimentos com colegas, audiências gravadas em vídeo, recursos, fofocas… Tudo por quê? Por uma desurbanidade às vezes inofensiva.

     Mas a lei não diz exatamente o que é urbanidade. E esse não-dito alimenta o pavor no espírito burocrático. Na dúvida, em secretaria sorri-se sempre um sorriso pré-moldado. Os burocratas, para alimentar as conversas nos recintos oficiais, tiram de seus paletós assuntos ordenados pela estação do ano: “Está frio”… “Está um calor hoje!”…. “Essa época seca é brava… tem que se hidratar”… “E essa chuva, heim?”…

     Evita-se qualquer aprofundamento em questões pessoais, assuntos controversos, julgamentos mais assertivos, opiniões mais incisivas, tudo a fim de se garantir que os diálogos se mantenham na área cinzenta da urbanidade.

     Mas ninguém sabe ao certo o que é essa urbanidade imposta por lei… então ela se torna uma censura velada, cujos critérios são desconhecidos, cujas fronteiras cada um fantasia e cuida para nunca os transpor.

     O limite da urbanidade não foi traçado, é verdade, mas todos sabem que ele está lá, em algum lugar. As pessoas vão prestando atenção nos assuntos que dão certo, que não geram atritos ou discórdias e, sempre que possível, em suas conversas cotidianas, mantém-se nessa zona de conforto, dentro da lei.

     Aos poucos, esses assuntos pré-fabricados tornam-se a norma. Viram um consenso, uma convenção e, por hábito, quem vive em secretaria passa a evitar assuntos diferentes, mesmo que inofensivos, mesmo que urbanos, atendo-se apenas àqueles já aprovados pelos costumes burocráticos.

        Há uma sólida jurisprudência formada no que diz respeito às conversas cotidianas de secretaria.

     Passa-se anos confabulando sobre as mesmas coisas num cartório burocrático. Não pela profundidade e riqueza do assunto escolhido, mas pelos limites impostos por uma lei imprecisa que cerceia, silenciosamente, os diálogos, as interações dos indivíduos na burocracia.

     A censura não apenas cala, ela tolhe o espírito, convenciona o comportamento.

     No entanto, outro dia, uma colega de trabalho fez-me uma pergunta inesperada.

     Eu havia acabado de chegar para iniciar meu expediente e ainda me livrava do capacete e jaqueta quando Kenia lançou a indagação: “O que é a tragédia? Por que uma tragédia é capaz de mudar uma pessoa?”.

     Havia algo de revolucionário naquela pergunta, algo de subversivo, que fugia ao ordinário dos assuntos de secretaria. Olhei para os lados desconfiado...

     A tragédia… Lembrei-me da Poética de Aristóteles. Do que me recordava do texto, a característica da tragédia era justamente a mudança pela qual passa o personagem. Talvez não fosse a tragédia – o evento trágico em si – que efetuasse as mudanças nas pessoas. Talvez fossem os acontecimentos encadeados para a mudança é que se tornassem trágicos… quando vistos retrospectivamente. A tragédia talvez só recebesse esse nome se houvesse alguma mudança no personagem.

     Talvez a tragédia não mude ninguém… talvez sejam as mudanças nas pessoas é que tornem os acontecimentos trágicos.

     No fundo, não sabia o que responder à colega. O computador em minha mesa pedia que eu pressionasse as teclas Ctrl + Alt + Del para iniciar. Parei por um instante e apenas ponderei que o importante era que houvesse alguma mudança, para que a tragédia tivesse algum sentido.

     Kenia, como Aristóteles, considerou as possíveis mudanças engendradas por eventos trágicos. Discutimos sobre exemplos em que as tragédias trouxeram o melhor ou o pior nos indivíduos envolvidos.

     Ao final, a colega concluiu que homens e mulheres podem desenvolver diversas facetas de humanidade após passarem por tragédias.

     Não ousei discutir. Suponho que Aristóteles e Kenia estejam certos em suas análises poéticas.

     Sem violar a urbanidade, sem desrespeitar a lei, concluímos a conversa inesperada e retornamos ao trabalho… mas aquela discussão me ficou na cabeça.

     Se a mudança é o que caracteriza a tragédia, então, com certeza, ao longo da peça, do texto, devem existir indícios, pistas, resquícios de que uma mudança se anuncia.

     Assim é com Édipo Rei. Sófocles, ao longo do texto, nos mostra a força do caráter do monarca, sua rigorosa observância às leis tebanas, narra as mensagens dos oráculos, as suspeitas de Jocasta… então os acontecimentos, aos poucos, trazem a história do personagem, e o Rei, que desconhecia seu próprio passado, desconhecia quem verdadeiramente era, passa a saber. Eis a mudança que torna os acontecimentos trágicos. Édipo passa da ignorância para o conhecimento… descobre que é assassino do pai e amante da mãe… e não suporta a descoberta.

     Depois da mudança vemos que ela estava anunciada desde o início; que Sófocles deixara uma trilha de indícios sobre a tragicidade dos eventos narrados.

     Assim parecem ser as tragédias se estivermos falando de dramaturgia… mas e na vida? Haveriam indícios das mudanças operadas nas pessoas que vivem alheias à trama da própria existência? É possível ver, nos eventos cotidianos, a mudança que se avizinha e a tragédia não anunciada?

      É possível olhar para nossas rotinas, nesse dia-a-dia burocrático, pleno de urbanidades, e perceber, antes das mudanças, o que de trágico há em nós? O que há de trágico nos outros?

     Dias depois da conversa com Kenia e com essas caraminholas rondando meus pensamentos, comecei a ler um livro chamado “As horas”, do escritor Alex Andrade.

     O texto rompeu a urbanidade censora do cotidiano.

     O livro é uma sequência de pequenas tragédias do dia-a-dia. Tragédias que se iniciam e se findam no espaço de horas. Nelas somos sempre lembrados que os indícios das mudanças – dessas mudanças trágicas – estão nas coisas banais de nossas vidas: Nos minutos que contamos no relógio, numa carta de amor, num poema lido em voz alta, numa bituca de cigarro, numa parede fria, num telefonema, num jogo de videogame, no tilintar de moedas, num guarda-chuva esquecido, numa casa abandonada, no olhar de um porteiro, etc.

     Essas pequenas coisas, no trágico das horas, trazem as mudanças possíveis nos personagens. Vemos as pessoas mudarem nas histórias do livro, em torno desses pequenos acontecimentos. Os contos que compõem a obra fazem-nos refletir sobre nossas próprias tragédias cotidianas e as pistas que nos levaram até elas. Mas como em toda tragédia, só percebemos que são trágicas, depois da mudança que se opera no personagem, depois da mudança a que nós, os leitores de nossas tramas, nos sujeitamos.


       Tenho que falar desse livro com minha colega de trabalho. Amanhã, na urbanidade das horas burocráticas.