3 de janeiro de 2019

Procrastinação


     Sobre a mesa descansa o corte de um livro, duzentas e poucas, trezentas páginas. Linhas retas, amareladas, finas, paralelas, enfileiradas. Perto da lombada as horizontais fazem uma leve curva se encontrando; parecem o cabelo alisado e alinhado de uma mulher de costas... uma mulher de cabelos longos e cabeça quadrada. A lombada está virada para a parede, não consigo identificar a obra. Não consigo identificar a mulher de cabeça quadrada, ver sua cara.

     As folhas… os cabelos dessa mulher estão cobertos por um xale azul, a capa do livro.

     Sobre a capa do livro, há uma multa de trânsito, não consigo ler o título, ou o nome do autor.

     Sobre a multa, um outro livro, sobre o livro uma carta, sobre a carta, folhas de xerox de algum texto, grampeado, sobre o xerox, uma nota fiscal, sobre a nota fiscal, um CD, sobre o CD, um rolo de fita crepe.

     E sobre tudo isso repousa a minha incapacidade de lembrar que livro é aquele debaixo de tudo.

     Não me ocorre, mesmo agora, em 2019, profanar esse misterioso totem de objetos aleatórios erigido ao longo de 2018, arrancando-lhe o alicerce.

     O totem deve permanecer de pé.

     Contemplo o ajuntamento de coisas. São minhas coisas e não sei por que estão desse jeito.

     Bem, eu sei que estão desse jeito. Eu sei que as fui empilhando nos últimos doze meses. Eu sei que tinha um plano para elas. Mas não sei por que acabaram com essa disposição específica.

     O rolo de fita crepe, que se equilibra na cimeira totêmica é algo mais recente em minha memória. Usei-o dia desses para medir a circunferência de um bastão de kung-fu. Estava sem fita métrica, precisava de algo flexível para fazer as medições. Pensei mesmo em calcular a medida pela fórmula matemática 2πR. Eu tinha uma régua rígida, podia achar o raio; eu tinha pi – que me foi confidenciado por um ancestral misticismo matemático –; podia muito bem achar a circunferência.

     Mas entre a elegante abstração numérica e a rudimentar ação de enrolar o objeto com uma fita, pareceu-me mais precisa e racional a segunda opção. O toque, ponto a ponto, da fita crepe na circunferência conferia mais certeza à operação. E eu precisava de precisão. Não da precisão em casas decimais, metafísica, de uma circunferência perfeita e inexistente, mas a precisão do toque ao redor do perímetro da madeira. A força dos fatos, ainda que os fatos sejam imprecisos, parece-me mais convincente que a razão abstrata.

     Eis o ápice dessa estranha instalação sobre minha mesa. Eis a cabeça do totem: os fatos.

     Abaixo do rolo de fita crepe, o CD… essa coisa espelhada onde é prensada a música.

     Vejam… O lugar da letra é no papel, é o seu habitat.

     Não se trata de um dogma, como afirmam alguns em artigos simplistas sobre o fim do livro impresso… são milênios de adaptação ao meio. Por um longo processo de seleção natural, as palavras que nos chegaram foram aquelas que se adaptaram ao papel, como os tentilhões de Galápagos.

     Machado de Assis, Victor Hugo... chegaram a nós, dentre outras coisas, porque se adaptaram à celulose.

     Muitas palavras escritas na areia, na argila, no tronco de árvores ou gravadas na memória de algum ancestral, por certo se perderam. Chegaram-nos hieroglifos, mas não o espírito das letras.

     A letra já aceitou o papiro, a pedra, aceita a tela do computador, do tablet, mas a mídia da letra é, ainda, o papel. Nessa fibra natural é que a palavra parece mais viva, mais adaptada. Pode ser que isso venha a mudar, pode ser que uma nova espécie de palavra, com vantagens competitivas mais adequadas ao meio digital, venha a substituir aquelas que se multiplicaram ao longo dos séculos sobre o papel, pode ser, mas por enquanto, não parece que haja algo melhor.

     Essa nova espécie ainda não surgiu. Ou talvez já tenha surgido, mas esteja esperando mudanças mais drásticas no ambiente para que possa se impor sobre as demais.

     O kung fu e o tai chi chuan, por exemplo, tem como habitat o corpo. Já tentaram transmiti-los pela fala, pela escrita, por vídeos… mas o kung fu e o tai chi nunca se adaptaram a essas mídias. A mídia marcial é o corpo. Dentro de um mestre chinês podem ser engarrafados mil anos de kung fu.

     Por milênios, as técnicas do bastão shaolin – esse que eu precisava medir com a fita crepe para poder talhar um desenho em seu lenho – foram transmitidas pela mímese do corpo, com um chinês se espelhando no outro.

     Agora, para voltar ao totem sobre a minha mesa, qual o substrato da música? O vinil? O CD? O pendrive? A nuvem? Nada disso parece ser o habitat da música.

     A música no CD, num smartphone, é como um bicho engaiolado, um flamingo numa piscina artificial, com suas penas desbotadas, uma onça num cubo de concreto tendo de ouvir os guinchos estridentes de excursões escolares.

     O lugar da música ainda é no instrumento, na voz.

     Fui a um show de Mateus Porto e pude ouvir milongas argentinas reverberado no corpo do violão, na voz. Comprei o CD que está abaixo do rolo de fita crepe. Capa amarela. Trouxe a música para casa, presa no CD. Não é a mesma coisa.

     O bicho totêmico sobre minha mesa é feito também de aprisionamentos.

     Sob o CD há uma nota fiscal. É possível ver o quanto foi pago. Não é possível saber em qual estabelecimento o dinheiro foi gasto. Pelo valor, o que me vem à cabeça é um pão de queijo e um pingado, consumidos há sete ou oito dias, após minha sessão de análise semanal. Naquela manhã eu havia falado sobre um sonho… Eu sonhei que alugara um apartamento. As paredes do prédio eram tão finas que era possível ouvir minha vizinha tentando compor uma canção com o violão.

     A vizinha era Adriana Calcanhoto… ela juntava os primeiros versos da canção “Esquadros”, tentando encaixá-los na melodia.

     Deitado no divã, balbuciei umas estrofes. Por que Adriana Calcanhoto?

     Lembrei de quando fui ao show de lançamento do CD “Cantada”.

     No meio do palco, com um feixe de luz sobre si, Adriana contou a primeira cantada que recebeu na vida… Disse que estava caminhando pela calçada, indo para a escola, branquela, quase leitosa, de uniforme e, encostado no muro, antes da entrada, havia um colega de turma, da sua idade, negro, com a pele mais escura que já vira. Recordou a cantora que, ao passar pelo amigo esse disparou:

     - “E aí? Vamos colocar o preto no branco?”

     - “Foi a melhor cantada que já recebi” - disse Adriana - “depois que comecei a compor, sempre tento escrever canções que tenham a força e a exatidão das palavras daquele menino”.

     No divã, sigo balbuciando a música “Esquadros”, penso na força e na exatidão da cantada de Adriana, das canções, dos movimentos de kung fu… penso que a exatidão e a força do kung fu não têm relação com as exatidões e forças das histórias de Adriana Calcanhoto.

     - “Justo você, que não é nem negro, nem branco, mas amarelo” - concluiu o psicanalista, antes de encerrar minha falação.

     Depois da sessão, sentei numa padaria e pedi um pão de queijo – amarelo – e um pingado – o preto no branco. Comi exatamente o que falara.

     O totem carrega essa autofagia.

     Amparando a nota fiscal dos doze reais gastos, umas quinze folhas de sulfite grampeadas. Xerox de algum texto. Pelas frases soltas que consigo ler nas beiradas do papel, noto que eram cópias de um conto de Donald Barthelme: “O Balão”.

     A história absurda de um balão que se infla, infla, infla e vai tomando conta da cidade, e o balão muda a paisagem de toda uma metrópole, muda a relação dos habitantes com a geografia urbana. Muda os acessos, as vias, os caminhos.

     Tenho pensamentos que são como esse balão fictício de Barthelme… pensamentos sem muito sentido, desconectados de tudo o que existia antes na paisagem da mente e que parece tomar conta da geografia do espírito.

     O que aquele texto está fazendo ali? Comecei a ler Barthelme por causa de uma entrevista de Susan Sontag… Sontag disse que estava lendo John Updike e Barthelme… procurei textos deles. Achei pouca coisa do primeiro, encantei-me pelo segundo.

     Mas li também uma apresentação de Updike sobre a “Metamorfose” de Kafka.

     Updike parece desconfiar da maneira como lemos a metamorfose.

     O fato de Gregor Samsa acordar e olhar para os braços e ver patas peludas e articuladas significa, realmente que houve uma transmutação? - pergunta Updike.

     Um monstro que pensa sobre a própria monstruosidade, é um monstro? Um monstro que quer continuar sua vida de caixeiro viajante, que quer agradar a família, que quer agradar o chefe, que se preocupa, que se angustia, perdeu, de fato sua humanidade?

     E, por outro, lado, Updike questiona… um homem que vive nas sombras, nos recônditos do lar, do local de trabalho, da sociedade, um homem que se esgueira, é ainda um homem?

     Updike sugere que o que há de mais humano em Gregor Samsa transparece na sua perturbada relação com o corpo metamorfoseado. Sugere também que o que há de mais animalesco no personagem, é a maneira como vive, diariamente, sua humanidade.

     O totem… o monstro totêmico representa o que há de selvagem, ou o que há de mais humano?

     Updike conta que uma das preocupações de Kafka ao editar o livro “Metamorfose”, foi que o monstro não aparecesse na capa. Kafka achava que a representação gráfica do monstro seria uma distração.

     Foi a única coisa que li de Updike. Gostei do nome do escritor, soa mais como um codinome.

     Por baixo do texto de Donald Barthelme espia a ponta de uma carta. É uma carta inacabada e não enviada. Escrevi-a para meu sobrinho, quando ele tinha quatro anos, não consegui terminá-la, as coisas foram se amontoando sobre ela e eu não conseguia dar um jeito de encerrar o assunto com aquela criança de quatro anos. Ela ficou sobre minha mesa, girando sobre outros papéis, sobre outros assuntos inacabados. Hoje meu sobrinho já tem seis anos. A carta sobre a mesa não é mais para ele. É para uma criança que não existe mais. E como a criança não existe, não sei como acabar a carta.

     De certa forma, o personagem que inventei para falar com meu sobrinho de quatro anos, ficou sem ter com quem falar.

     Não consigo reciclar nem quem eu sou, nem o sobrinho que imaginei, nem a carta.

     Tive um amigo que, certa vez, concluiu que a cidade não tinha cestos de lixo de coleta seletiva (orgânicos e recicláveis) suficientes.

     Como forma de protesto e conscientização, esse colega ia colocando seus restos nos bolsos das calças e do casaco, deles se livrando somente quando encontrasse uma lixeira que atendesse o requisito da seletividade.

     Carregava consigo cascas de banana, miolos de maçãs mordidas enrolados em guardanapos, copos plásticos de café, papéis de bala, recibos, para cima e para baixo, e só caminhava a pé.

     Cheguei a vê-lo colocar no bolso um… não, deixa pra lá que isso não acrescenta em nada a história.

     Se combinávamos de nos encontrar num boteco, ele já chegava com os bolsos carregados.

     Os lixos do café se acrescentavam aos demais e saíamos caminhando para nosso destino, uma livraria, um museu, outro café.

     Às vezes, na rua mesmo, ou em algum estabelecimento comercial, parávamos diante de uma lixeira comum e eu dizia: "Larga esses lixos aí. Isso aí na tua frente é uma lixeira".

     - "Não. Essa não é uma lixeira seletiva. Se eu jogar tudo aqui, misturado, algum ser humano vai ter que separar o que é reciclável do que é lixo orgânico. Parte do que é reciclável talvez deixe de ser reaproveitável. Isso é uma falta de respeito com quem quer que trabalhe na reciclagem do lixo da cidade".

     “Eu prefiro fazer de meus bolsos uma lixeira temporária a tornar-me uma lixeira não seletiva – como essas da cidade –, que não consegue nem distinguir no outro o que é humano... a tratar outro ser humano como lixo”.

     Era um protesto sem palavras de ordem, sem público, diante da própria perplexidade pela falta de lixeiras, pela falta de consciência.

     Era um protesto diante do lixo que nos tornávamos, dia a dia, sem lixeiras de coleta seletiva.

     Esse meu amigo teria gostado das considerações de Updike sobre Kafka. Ele conseguia ver nossa monstruosidade, disfarçada sob nossas pequenas ações humanas.

     Abaixo da carta vejo a lombada de um livro. “Trabalhadores do Mar”, de Vitor Hugo, traduzido por Machado de Assis. Há meses peguei esse livro, na esperança de relê-lo. Na última vez que o visitara eu era ainda adolescente. Queria lembrar da passagem em que o personagem, Gilliatt, briga com um monstro desconhecido submerso no mar. Machado de Assis decidiu não traduzir o nome do bicho que em francês era “pieuvre”.

     Como eu não sabia francês, o monstro marinho tornava-se mais desconhecido, mais pavoroso. Nem sabia como ler aquela palavra não traduzida. Em minha cabeça, imaginava que a palavra devia ser pronunciada “piãve”.

     A primeira palavra que disse em minha vida foi “Puave”… minha versão fonética para o objeto chave.

     Ponderei isso no divã, outro dia.

     A chave era esse objeto misterioso, sem sentido, que as pessoas grandes carregavam para lá e para cá, escondido em bolsos e bolsas e largavam sobre as mesas quando chegavam em casa. “Puave”. Era o símbolo de um mundo que eu não conhecia, o mundo de adultos que carregavam aqueles objetos sem sentido.

     Eu não tinha uma chave.

     Como no livro “Trabalhadores do Mar” eu não sabia a tradução para a palavra “Puave”.

     Palavras desconhecidas para objetos misteriosos.

     - “Numa nota mais gastronômica… ‘poivre’, em francês, significa pimenta, uma especiaria trazida do oriente”… concluiu o analista, como se a miscelânea de palavras “pieuvre”, “puave” e “poivre” tivessem alguma relação com minha ascendência oriental, com minhas origens.

     O livro de Victor Hugo, traduzido pelo bruxo do Cosme Velho, cobria uma multa de trânsito.

     Motivo: “Desobedecer ordens de autoridade de trânsito”. Infração grave. Penalidade de multa. A multa tem já quase um ano, está paga, mas guardei-a. Pelo documento, pelo texto.

     Eu sou um cumpridor da lei.

     Estava há um ano com minha licença para dirigir motocicletas. No caminho para o trabalho, ao meio-dia, sob o sol do Cerrado, o asfalto parecia evaporar. Uma das pistas estava interditada. Obras. As máquinas desligadas. Homens faziam a siesta debaixo de um pé de manga. Minha pista parecia liberada. Segui meu rumo. Ao passar pelo pé de manga ouvi um grito: “Ei!”. Segui meu rumo.

     Duas semanas depois, na caixa de correios de casa, a notificação por “Desobedecer ordens de autoridade de trânsito”.

     - “Ei” - disse a autoridade sob o pé de manga.

     Esse louco jogo de significados que se distorcem no calor do Cerrado.

     Perto da base de meu totem, há, portanto, uma infração. Uma punição por ter violado as ordens de uma autoridade.

     Abaixo da antiga multa o corte do livro, que me vira as costas, com os cabelos retos cobertos por um xale azul.

     Que livro é esse, que há tanto eu planejava ler? Não sei.

     Todas essas coisas… Separadas, são trecos.

     Juntas, um totem… que parece ter alma. Que olha numa certa direção, mas olha para além do que consigo enxergar… e o que o totem vê é tão fascinante, ou tão apavorador, que ele sequer consegue se mover, nem pisca, mantém os olhos arregalados.

     Eu olho o totem e posso apenas imaginar o que ele enxerga.

     Feliz ano novo.