16 de novembro de 2018

Ética


     Tive um grande amigo chamado F., poeta.

     F. pensava em versos e vivia em versos.

     O raciocínio desse colega era mais apegado à rima, à métrica, ao som, à imagem, que à lógica. Não que a lógica não estivesse em suas matutações. Estava, mas ela era mais comedida, perambulava sem muito alarde, como um garçom, servindo discretamente às figuras poéticas que transitavam bem-arrumadas pelo salão do pensar desse antigo companheiro.

     Mantivemos a amizade pelos quase cinco anos de graduação.

     Quando nos reuníamos em grupos de estudos para tentar entender os textos das disciplinas do curso de Filosofia, pouco lhe importava o rigor da reflexão, as premissas, as conclusões, a bibliografia, a correta tradução dos termos… Não lhe importava sequer o filósofo, sua contribuição para a História do Pensamento Ocidental ou o comentador que sugeria esta ou aquela interpretação.

     Agora, se no meio das discussões brotava uma palavra, uma metáfora, uma rima, uma metonímia, F. pedia que interrompêssemos a leitura para apreciarmos, por mais tempo, aquele único verbete, aquela única expressão, aquela única imagem.

     - “Peraí… isso aí é bonito. De onde será que ele (‘ele’ podia ser Hegel, Nietzsche, Kant, Parmênides, podia ser Ruy Fausto, Paulo Arantes, Bento Prado Júnior, Francis Wolff, etc) tirou isso?” - F. suspeitava sempre da originalidade das ideias… fossem de quem fossem… até de Sócrates já o ouvi duvidando.

      - “Essa coisa da caverna, meu amigo, devia ser um lugar-comum na Grécia, um lugar cheio de buracos… Sócrates deve ter compilado anedotas que circulavam pelas ruas de Atenas… O que não diminui seus méritos, mas...”.

     Enquanto os trabalhos acadêmicos da classe - os meus, inclusive – esboçavam pobres comentários sobre um ou dois capítulos desta ou daquela obra filosófica, F. redigia páginas e páginas sobre uma única frase pinçada de algum parágrafo pouco relevante do ponto de vista acadêmico.

     - Sobre todo o resto – até sobre isso aí que você escreveu – já foi dito coisa demais” - justificava.

     Entre uma tradução correta, técnica, fiel ao original do texto aristotélico e uma péssima tradução recheada de curiosas contradições e erros “trágicos”, F. nunca hesitava em defender a segunda.

     - Vamos aprender mais com esses erros peculiares, mas poéticos, que com aqueles tediosos acertos”.

     Líamos os mesmos textos… mas a semelhança entre nossas experiências de leitura acabava aí. Ao sentarmos na cantina da universidade para discutirmos o que havíamos lido, percebia que F. não se lembrava dos argumentos, de como o texto era construído, da sua estrutura, nada disso… mas havia decorado, na íntegra, uma citação perdida numa nota de rodapé inserida pelo tradutor. O que ficara gravado em sua memória era uma breve divagação sobre como determinada palavra grega havia sido utilizada por algum outro autor desconhecido, no mesmo período, em tal século antes de Cristo.

     Aquela palavra, aquele uso específico e improvável da palavra – da língua morta – o interessava.

     O pensamento desse amigo, suas reminiscências, estavam a serviço da poesia. E de pensar assim, muito e amiúde, F. vivia em versos.

     Agia, não pela utilidade de seus atos, mas pela carga poética que portavam.

     Nunca o vi entrar numa biblioteca sabendo o que procurar. Passeava pelas prateleiras como quem passeia por uma cidade estrangeira, querendo ser surpreendido, querendo sentir o frescor de novos ares. Retirava ao acaso um volume, folheava-o, lia alguns parágrafos e, desobedecendo os cartazes de ordem, devolvia-o.

     Interessava-se pelas prateleiras dos livros devolvidos: -"Veja só o que as pessoas andam lendo!"

     Convidava-me a andar pela biblioteca como quem convida um amigo a caminhar pela praça.

     - “Tem um livro que você precisa ler… eu o vi outro dia, estava por aqui, mais ou menos nessa altura, ao lado de um livro de capa amarela”.

     A biblioteca, para F., não era um mero acervo, tornava-se uma geografia.

     Um dia, enquanto caminhávamos pelas mesas da biblioteca, F. encontrou uma volumosa obra de contabilidade deixada sobre a mesa (como bem impunham os cartazes). Deslizou o volume sobre tampo de fórmica em minha direção e disse:

     - “Se eu passar o próximo ano da minha vida lendo e entendendo essas páginas, talvez eu me torne uma pessoa útil para a sociedade. E então, ao final desse ano, como tudo que é útil, eu terei um preço”.

     Em seguida, erguendo um livro de Tolstoi ponderou:

     - “Se eu passar o próximo ano da minha vida lendo e entendendo profundamente essas páginas eu não terei utilidade alguma, nem terei um preço… mas talvez eu descubra algo sobre mim. E então, talvez, ao final de um ano, eu compreenda um pouco melhor quem eu sou”.

     E meteu Tolstoi debaixo do braço.

    Após nossa formatura, nunca mais o vi. Talvez tenha chegado a alguma conclusão sobre si. Não sei.

     Nesses tempos em que as palavras são violentadas, distorcidas e menosprezadas; nesses tempos em que as ações são movidas por discursos que surrupiam o sentido dos termos; nesses tempos em que nos ocupamos mais em sermos úteis, em termos um preço, nos furtando de buscar quem somos, lembro-me de F. saindo da biblioteca com o livro de contos de Tolstoi a tiracolo, num ato de lucidez e coragem.

     F. sempre esteve disposto a pagar o preço de ser fiel às palavras.

     Antes de encerrar o texto, deixo-lhes alguns versos de F.:

Minha mãe diz (ao lavar a louça)
que o maior perigo é esfregar
demais o alumínio
até que se veja nele nosso
reflexo

(...)

     F. faz falta.