Na
repartição onde trabalho uma de minhas atribuições é secretariar
as audiências cíveis. Eu fico num canto da sala, atrás do monitor, digitando o que as pessoas falam.
Uma
audiência, via de regra, acontece quando o processo alcança um
estágio em que, para se decidir quem tem ou não um direito, é
preciso a prova testemunhal.
Ocorre
quando o deslinde da contenda depende do testemunho das pessoas que
presenciaram o fato, para se saber como este se deu.
Supõe-se que algum fragmento da verdade talvez esteja incrustado na
fala dos homens.
Por
exemplo, num processo de pensão por morte, em que os pais pleiteiam
o benefício previdenciário e a administração pública o nega sob
a alegação de que eles não eram dependentes econômicos do filho
morto, por lei, é preciso saber se eles eram ou não dependentes
econômicos daquele filho.
Mas
como se prova a dependência econômica se os documentos no processo
são insuficientes?
Testemunhas! Vizinhos, conhecidos, desconhecidos... todos vão parar
na sala de audiências. Quem pagava as contas? Quem fazia as compras no supermercado?
Conforme o que testemunharem, a prova pende para um lado ou para
outro. É a busca burocrática pela verdade.
Assim
funcionam as audiências... todas a quartas-feiras.
Agora,
eu não costumo sonhar com meu trabalho... e isso me dá uma certa
satisfação. Considero quase uma conquista pessoal. Entretanto, outro dia, sonhei com uma estranha audiência que sequer
posso dizer se era ou não de natureza cível.
A
representação onírica inicia-se como um dia de audiências
qualquer. Preparo a sala para receber as partes envolvidas, separo o
processo - trata-se de uma disputa judicial de usucapião - e espero
o horário para abrir a porta.
O
primeiro a chegar à repartição é o autor da ação, o Sr. Juan
José Arreola, escritor mexicano de cabelos rebeldes, falecido em
2001, acompanhado de seu advogado, um homem calvo e de semblante
cerrado.
Sentam-se à mesa e aguardam a chegada do réu.
Este
chega pouco depois, o Sr. Jorge Luís Borges, escritor argentino,
cego, com sua bengala - falecido em 1986. No sonho, advogava em causa
própria.
Tomou
seu lugar na sala de audiências e aguardou, fitando o vazio à sua
frente.
Assim,
sentados, esperamos todos a chegada do magistrado.
O juiz
entra e vai logo chamando a primeira testemunha. Abro a porta da sala
de audiências e chamo ao recinto a testemunha arrolada pelo autor:
um rinoceronte.
O
animal se esgueira entre as cadeiras e, arranjando as várias peças
moduladas de seu enorme corpo, senta-se diante do magistrado.
O
ponto controverso é a ocorrência (ou não) do uso contínuo e
inconteste do fantástico por parte do sr. Juan José Arreola, para
que se determine se o mexicano tem ou não a posse desse estranho bem
jurídico.
Jorge
Luis Borges parece alheio à presença animalesca no ambiente
burocrático.
O juiz
pergunta a natureza da relação da besta com o Sr. Arreola. O animal
afirma não ter nenhuma relação especial com o autor, apesar de
conhecê-lo "de vista".
O
juiz, sagaz, retruca: "Sabe-se que os rinocerontes têm visão
bastante limitada, como pode ter certeza que conhece, "de
vista", o Sr. Arreola?".
-
"Temos um amigo em comum, o Sr. Joshua McBride, um rinoceronte
que também é juiz. Talvez Vossa Excelência o conheça".
O
magistrado se dá por satisfeito.
O
advogado de Juan José, o senhor careca de semblante cerrado,
pergunta: "Gostaria de saber da testemunha o que ela é".
- “O
que és?” - Inquire o Juiz.
- "Sou
um rinoceronte" - responde a besta.
- "Quem
o indicou como testemunha no processo de usucapião?" - seguiu
perguntando o advogado.
-
"Pode responder à pergunta" - concedeu o magistrado.
-
"Creio que foi o Sr. Juan José Arreola".
- "Sem
mais perguntas" - encerrou o careca.
- "O
Sr. Borges tem alguma pergunta?"
Antes
que o argentino pudesse responder, despertei.
Agora,
quero propor aqui uma interpretação para este sonho.
Há
algumas semanas, fui apresentado à literatura fantástica de Juan
José Arreola pelo escritor e jornalista Sérgio Tavares.
Não o
conheço pessoalmente, exceto por uma foto que estampa a coluna que
escreve no "Diário do Paraná".
Como
podem imaginar, nesta fotografia, ele está careca e possui semblante
fechado, como o advogado do escritor mexicano.
Por
ter me apresentado aos textos, aparece no sonho como defensor de
Arreola.
Outro
elemento importante do sonho é a classe do processo com o qual
ingressa o escritor mexicano. A ação de usucapião é geralmente
proposta quando alguém ocupa um imóvel por muito tempo,
configurando a posse, sem que o legítimo proprietário saiba.
Ao ler
a obra de Arreola, tive a impressão de que eu ficara tempo demais
sem tê-lo conhecido. Cheguei a ser tomado por um sentimento de culpa
por ter ignorado o autor. Assim, é justificável que, no sonho,
respaldado por seu advogado, o Sr. Sérgio Tavares, ele venha cobrar
seu lugar em minha biblioteca, propondo a ação de usucapião.
Borges, por sua vez, não necessita de representante. Fala por si.
É
importante ressaltar que, na Justiça Federal, órgão onde trabalho,
em geral, as ações não são proposta contra indivíduos, mas
contra instituições, contra o próprio Estado.
Parece
evidente que, no sonho, Borges ocupa o lugar de uma instituição –
tamanha a força de seus escritos.
Meu
inconsciente colocou o autor argentino como o próprio Estado. Por
outro lado, colocou-o no banco dos réus. É Borges quem responde à
ação proposta por Arreola.
Há
aí, estampado, meu complexo de Édipo. O desejo reprimido de
condenar o Pai (Borges) para realizar meu desejo de possuir a mãe (a
literatura fantástica). Como carrego comigo o sentimento antagônico
de admiração pelo Pai (Borges), utilizo-me de Arreola para
condená-lo.
Por
fim, é necessário interpretar a presença do paquiderme na
repartição pública. “O Rinoceronte” (existem dois contos do
autor com o mesmo título) foram os textos de Arreola que mais me
impressionaram. Assim, em meu sonho, o animal testemunha em favor do
mexicano. A mera presença de um rinoceronte na sala de audiências
comprova a natureza fantástica da literatura de Juan José Arreola.
Embora
o sonho tenha acabado prematuramente, bem como a ação de usucapião,
suponho que sejam devidos os honorários advocatícios ao
patrocinador da causa, o Sr. Sérgio Tavares, a quem agradeço por
apresentar-me à esses textos impressionantes.
Texto de Sérgio Tavares sobre Juan José Arreola: http://confrariadovento.blogspot.com.br/2014/03/enquanto-alguem-voraz-me-observa.html