Na repartição onde trabalho há um sujeito chamado Gustavo. Ele é lotado no gabinete, onde redige sentenças. Tem sobrenome judeu mas sua ascendência e origem é sul-mato-grossense.
Gosto do Gustavo porque ele é um tipo sul-mato-grossense que conhece das coisas do Mato Grosso do Sul. É o que é. Papo reto.
Por exemplo, a cultura do estado tem algumas influências específicas; possui uma forte colônia árabe e já foi uma terra de índios - que tiveram o mesmo fim de quase todos os índios que já habitaram esse país - e Gustavo saca dessas coisa locais; com ele aprendi uma expressão idiomática de cada uma das culturas formadoras desta terra. "Charmuta", em árabe, significa filho-da-puta e "Jaha Karu", em guarani, significa "Vamos comer"... "Jaha Kaça" é a versão chula da mesma expressão, algo como "vamos rangar".
Sem dúvidas, tornei-me mais sábio sobre as coisas dessa região.
Outra característica dessa terra é a pesca. As pessoas se divertem pescando. O calendário da pesca, quando é permitida e quando é proibida, é conhecido por quase todos.
Gustavo, sul-mato-grossense que é, também pesca e sabe alguma coisa sobre essa arte. Ao menos sabe muito mais que eu, que só conheço as histórias de pescadores.
Outro dia, contou-me um fato curioso. Para cada classe de peixe, faz-se um tipo de isca; e há um peixe específico... Tucunaré ou Dourado, não me lembro bem, para o qual a isca ideal é a cabeça de uma colher.
Isso mesmo, corta-se a cabeça de uma colher e amarra-se perto do anzol. Ao se puxar a linha, a colher faz um movimento submerso circular que atrai o peixe.
Funciona tão bem, mas tão bem, que é proibida. Pescar com colher, por essas bandas, é considerado pesca predatória.
O Dourado (ou Tucunaré) simplesmente não tem escolha ao ver uma colher rodopiando na água. É como oferecer pinga a bêbado. É a isca perfeita.
Fiquei impressionado com a informação pesqueira. Não porque tenha algum interesse em pesca, mas porque tenho um grande interesse em histórias.
Sempre acreditei que as boas histórias são como peixes. Peixes difíceis de se pegar. Assim, a ideia de uma isca perfeita é inevitavelmente sedutora.
Aos pescadores de histórias, comumente chamados de escritores, caberia a confecção da isca certa, para fisgar o peixe arredio.
A literatura seria, então, o resultado de uma isca bem feita pelo escritor, para fisgar o tipo preciso de narrativa.
Às vezes lançamos nossos anzóis e eles retornam com lixo, algas, ou com peixes simplesmente vergonhosos. É preciso trabalhar a isca. Na outra margem do rio, do mesmo rio, vemos homens e mulheres tirando peixes tão grandes que, quando saem da água, o nível do rio chega a baixar uma polegada. Tiram ouro do nariz.
Infelizmente, não vemos a isca. Ela está dentro da boca do peixe.
Outro dia, por acaso, deparei-me com dois contos de um escritor chamado Sérgio Tavares, de quem nunca tinha ouvido falar. Escrita "de cair o cú da bunda", como dizem aqui no Mato Grosso do Sul.
Li e reli os contos umas sete vezes e pensei comigo: "Esse corno arranjou uma cabeça de colher! O desgraçado pegou esses dois peixes com colher!"... "Charmuta!".
Hoje, novamente, com mais calma, reli os contos. Não sei qual colher ele usou, como a cortou, como a amarrou ao anzol ou como puxou a linha. Esses detalhes se foram na fisgada. Tenho apenas os peixes.
"Jaha Karu"!
P.S.: Os contos de que trato acima são: "Sonho" (http://zonadapalavra.wordpress.com/2014/03/13/sonho-conto-de-sergio-tavares/) e "Peixescuro" (http://zonadapalavra.wordpress.com/2014/02/16/peixescuro-conto-de-sergio-tavares/).