Nos últimos dias, andei às voltas com uma ideia de Adolfo Bioy Casares. A ideia de uma máquina capaz de reproduzir uma pessoa; não apenas a imagem de uma pessoa, mas a pessoa em si, seu corpo, sua alma, seus pensamentos, suas ações.
Casares, ao remoer esse pensamento, essa possibilidade, considerou que, evidentemente, tais reproduções só poderiam reagir às variáveis previamente estabelecidas pela máquina. Elas teriam pensamentos próprios, sim; poderiam interagir com o mundo, sim; mas esses pensamentos e essas ações só poderiam ter como objeto a realidade criada pela máquina.
O raciocínio do argentino, pareceu-me irretocável e, portanto, muito atraente.
Deste modo, deduziu Casares, essas "pessoas" seriam indiferentes a um novo objeto ou um novo indivíduo não previsto pela máquina.
Se, por exemplo, plantássemos um jardim de flores num lugar de passagem, as "pessoas" pisoteariam as plantas, sem sequer notá-las, pois não faziam parte do programa original.
"Adolfo tem razão" - eu ponderava - "as pessoas realmente acabariam agindo assim".
Pensei em como seria curioso se as ideias de Casares ganhassem realidade. E enquanto pensava na possibilidade da invenção ainda não concretizada, de como seria estranho ver pessoas agindo alheias à realidade, vivendo num mundo paralelo e incompleto, veio-me a ideia oposta: de que talvez a máquina já existisse e que, talvez, eu fosse uma daquelas reproduções, vivendo alheio ao real, de maneira incompleta.
Sou um burocrata, trabalho num cartório judicial e repito tarefas que pressupõem certas pessoas e coisas. Preciso de meu computador, de petições, de advogados que confeccionem as petições, de um juiz que impulsione o processo, de processos, de armários onde estão os processos, de carimbos para indicar para qual dos armários ou qual dos advogados irá cada um dos processos, etc.
Essas pessoas e coisas se repetem incessantemente e o mais curioso é que eu apenas interajo com essas pessoas e coisas muito específicas.
E se no armário houver guardada um outra coisa além de processos, um dragão com escamas vermelhas, por exemplo, será que eu o notaria? Se alguém, no balcão pedisse algo sem relação com os processos, um conselho sobre a vida, será que eu o atenderia?
Será que eu não sou uma reprodução de alguém? Uma reprodução que apenas é capaz de interagir com as variáveis impostas pela máquina burocrática. Será que eu não sou uma "pessoa"?
Fiquei com raiva da invenção de Bioy. Quis matá-lo por essa perversa criação. Ocorre que Bioy está morto. Dele, sobrou-me apenas as ideias.
P.S.: A ideia de que tratei neste texto está no livro "A invenção de Morel", publicado em 1940 por Adolfo Bioy Casares.