17 de julho de 2019

Cilício

Ao amigo Edson

F., poeta, não acreditava no frio. Suspeito que sim, o sentia, mas escolhia não acreditar. Tentava de tudo que era jeito desautorizá-lo, negando-se a bater os dentes, ou esfregar as mãos em sinal de rendição, ironizando a fé cega das gentes nos termômetros, ignorando a opressão física de sua presença, recusando submeter-se à autoridade térmica.
Alguns precisam ver, tocar, sentir para crer. F. optava por não crer, mesmo sentindo, mesmo tocando, mesmo vendo.
- "São Tomé foi um fraco" - Explicava o incrédulo - "Deveria ter continuado a duvidar, duvidar, duvidar... Até perceber que aquilo que via e sentia e tocava, de fato, não existia”.
Inúmeras vezes perguntei-lhe antes de sairmos perambulando pelas calçadas e estações tubo - aceleradores de vento gélido onde passageiros aguardam os ônibus - na noite de Curitiba: "Certeza que não vai levar uma blusa?".
- "Não está frio. Nem vai esfriar" – dizia em voz alta e desafiadora, ironizando a temperatura, como se ela estivesse ali, conosco, ouvindo a conversa. Para F. o frio não era diminuição na agitação das moléculas, não era algo aberto às medições, à verificação empírica, era um problema ético, um inimigo moral.
Numa de nossas peregrinações noturnas, ao final de longa e gélida romaria por gafieiras e bares curitibanos, de tanto frio, preferi passar a noite na casa de F.. Não iria ficar horas dentro dum tubo de vento trincante aguardando a primeira condução do dia.
Na casa de madeira não havia cobertores, mas ao menos o ar frio não corria, tilintando os ossos.
Enquanto F. se trocava, passei os olhos pelo cômodo.
Pendurado na parede da sala, um quadro de São Sebastião, cravejado de flechas. O santo vestia apenas um pano vermelho sobre a pélvis. Papéis, poemas, rascunhos, povoavam a mesa, as cadeiras, a bancada, o sofá. Peguei um panfleto anunciando pneus e amortecedores para veículos. No verso estava rabiscado um poema, três linhas, e o desenho de um sapo segurando um guarda-chuva.

"Duas coisas nos permite Deus:
A falsa virtude de sermos carolas.
A falsa coragem de sermos ateus".

- "Gostei desse aqui" - disse-lhe apontando o panfleto de amortecedores.
No aparelho de som, F., agora já vestido com uma bermuda vermelha, do Sport Club Internacional, botou um disco. 
Uma música. Uma música talvez aquecesse a alma.
Era o LP de uma atriz brasileira que declamava poemas de Fernando Pessoa.
Após breve ruído da agulha contra o vinil, ouvimos:
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
se queres matar-te, mata-te...”
A voz era pausada e gelava-me o espírito.
- "Que poema para um resto de noite gelada.... Caralho, como você dorme nesse frio?" – perguntei contraindo os músculos que tremiam enquanto eu tirava rascunhos de cima do sofá para poder me assentar.
- "Que frio?" – disse novamente em tom irônico e declamou os versos que acabáramos de ouvir - "Encara-te a frio, encara a frio o que somos... O frio serve como metáfora, meu amigo; agora, como sensação, como experiência, como coisa vivida, é de uma pobreza, de uma falta de imaginação. Eu escrevo nesse horário. Posso escrever sobre o frio, mas nunca com frio".
E meteu-se na cozinha, de bermuda vermelha, sem camisa, descalço, com um caderno e um lápis nas mãos. Parecia um São Sebastião, de corpo fechado para as flechas de ar gelado.
Eu, em vão, meio enviesado para não ter que tirar as meias e o sapato naquele frio, tentava dormir no sofá, ao som do poema de Fernando Pessoa, do lápis contra o papel, das páginas virando sobre a mesa da cozinha.

"se queres matar-te, mata-te..."

De repente, F. me sai correndo pela porta de trás da casa. Tromba com a vitrola que, assustada, recolhe o braço e a agulha silencia. Um vento frio levanta todos os poemas e rascunhos soltos pela casa. O sapo com guarda-chuva desliza pelo chão.
Não me movo. Deitado, economizando calorias, sentindo o ar resfriando o encosto do sofá, penso: “Puta, que cara louco!”. Mas logo escuto uma barulheira e sons secos repetidos. Levanto-me. No quintal gelado, um bicho morto. Um filhote de cachorro, de pelo branco e negro, já tomado pelo rigor mortis.
F, com uma pá nas mãos, cava uma sepultura. Descalço, aperta a sola do pé direito contra a lâmina gelada da ferramenta que tira um naco da terra. É noite, não vejo bem o rosto de meu amigo. Tenho a impressão de que chora. O bicho, pequenino, rígido, morreu de frio, esquecido no quintal, sem coberta. Corria um ar de cordilheira ao redor da casa. O sereno caía.
Vendo-me parado, tremendo de frio e abismado com a cena, F. disse:
- “Não é nada. É só um bicho morto. Ganhei de Fulana, de presente, ontem. Vou enterrar” – respondeu, recusando-se a sofrer por conta do cilício gélido que lhe roçava o corpo.
Voltei para dentro da casa, ajeitei a agulha da vitrola.
Ao ritmo das batidas da pá contra o chão gelado, a atriz seguiu declamando o poema:
"Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tem importância absolutamente nenhuma?".

Peguei o sapo que segurava um guarda-chuvas e reli o poema rabiscado por F.:

"Duas coisas nos permite Deus:
A falsa virtude de sermos carolas.
A falsa coragem de sermos ateus".